As Academias do Sião, de Machado de Assis

As Academias do Sião, de Machado de Assis

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O tema da definição da sexualidade foi colocado por Machado de Assis em um conto surpreendente. Refiro-me a As Academias do Sião, que tem como pano de fundo um rei da Tailândia (nome atual do Sião) e sua concubina preferida. O rei, Kalaphangko, contava 300 concubinas. Conta-nos Machado que vagalumes (com cores de leite) seguiam para os céus, em encantadora procissão, materializando e sinalizando os suspiros desse interessante soberano. As estrelas questionavam aquela profusão de vaga-lumes, perguntando, com quem ficara o lindo Kalaphangko. O rei era exuberantemente lindo.

Kinnara, também tão exuberantemente linda, era sua companhia predileta. O rei, no entanto, prossegue Machado, perfilava uma esquisita feminilidade, olhares doces, uma voz argentina (talvez uma evocação a um timbre de prata), atitudes moles, um horror às armas. Na fala do escritor, o rei era verdadeiramente uma dama. Kinnara, por outro lado, apresentava comportamento másculo; era, segue Machado, um búfalo com penas de cisne. Perguntava-se então se as almas seriam masculinas ou femininas. Perguntava-se, diretamente, por que havia homens femininos e mulheres másculas. As almas seriam masculinas ou femininas, ou, ainda, haveria alma neutra? Esse o grande problema do reino, que o rei aceitou desvendar.

Convocou as quatro academias que lá havia. Endereçou a pergunta. Uma das academias sustentou que almas tinham sexo e que havia anomalias. Isto é, corpos eram trocados. Por isso, almas femininas em corpos masculinas, e almas masculinas em corpos femininos. Com o resultado sobreveio uma guerra. Foram 38 mortos, cujas orelhas viraram colares e braceletes, que premiaram U-Thong, o presidente da academia vencedora. Em Sião os intelectuais eram vaidosos. Muito vaidosos. A pedido de Kinnara, o rei declarou a doutrina da alma sexual legítima e ortodoxa.

Pacificada a questão (ainda que o rei não estivesse seguro do resultado) Kinnara propôs que trocassem de corpos. Sua alma (máscula) tomaria o corpo do rei. A alma do rei (feminina) ocuparia o corpo de Kinnara. Como? Kinnara sugeriu o método Mukunda, infalível procedimento por meio do qual o rei da Índia havia se metido no cadáver de um brâmane. Embarcaram em uma piroga e protagonizaram o ritual, no meio de um rio. As almas foram trocadas.

Antes da troca das almas o reino ia às soltas. Não se recolhiam adequadamente os tributos, não se respeitava a autoridade do rei. Com a nova alma, alterações profundas foram feitas no sistema judicial, no culto, nas cerimônias. Contribuintes remissos foram logo decapitados. Os tributos começaram a ser recolhidos. Os missionários cristãos, pregadores de uma nova religião, foram imediatamente expulsos. O Sião declarou guerra para um país vizinho. Feliz com a nova situação (a nova alma) o rei cogitou em matar a companheira. Não sabia como fazê-lo.

Retomou contato com os membros da academia, com quem falava isoladamente. Eles falavam mal um dos outros. Resolveu então deliberar por si mesmo. A companheira lhe revelou que teriam um filho, o que o fez repensar o assassinato que planejava. Desistiu. A troca de almas fora prevista para a duração de um semestre. O prazo chegava ao fim. Tomaram novamente o barco. Era chegada a hora de retornarem à situação original das almas.

Conta-nos Machado, que um barco vinha ao longe, do qual se ouvia uma linda melodia. Os sábios, que lá estavam, cantavam Glória a eles mesmos, que se diziam o arroz da ciência e a claridade do mundo. Quando estavam juntos, tinham-se como a claridade do mundo. Separados, se criticavam e se diziam camelos. Como? O rei queria uma resposta. Maliciosamente, Machado encerra o conto sugerindo que os leitores que tivessem reposta que enviassem uma carta ao rei, por intermédio da legação brasileira na China.

Trata-se de um conto absolutamente arcano, que suscita inúmeras interpretações. Ao mesmo tempo em que é uma crítica aos sábios e respectivas vaidades, é também uma abordagem inesperada em relação a um tema cuja relevância Machado de Assis não deixou de reconhecer. Deixa ao leitor, no entanto, como o fazia quase sempre, a tarefa interpretativa, com o benefício da escolha.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 05/02/2020
Código do texto: T6858629
Classificação de conteúdo: seguro