Diário das minhas leituras/14

09/12/2018 – CARSON McCULLERS

Do lindo, maravilhoso “O coração é um caçador solitário”: - Por que é que, em casos de amor verdadeiro, não acontece com mais frequência de a pessoa que fica resolver seguir a pessoa amada cometendo suicídio? Será que é apenas porque os vivos têm que enterrar os mortos? Por causa dos rituais que têm que ser cumpridos depois de uma morte? Porque é como se a pessoa que fica subisse por um tempo em cima de um palco e fosse observada por muitos olhos e cada segundo inchasse e demorasse uma quantidade de limitada de tempo para passar? Porque ela tem uma função a desempenhar? Ou será que talvez, quando há amor, a pessoa que restou tenha que ficar no mundo para a ressurreição da pessoa amada - para que a pessoa que se foi não morra realmente, mas cresça e viva uma segunda vez na alma dos vivos? Por quê?

10/12/2018 – QUINTANA

Último bilhete deixado por um obstetra suicida: "Parto sem dor".

10/12/2018 – O. HENRY

O. Henry privilegia os contos referentes às camadas mais baixas da sociedade norte-americana. Faz mais ou menos o que o Gorki faz com os pobres da Rússia. Nem sempre ele acerta, mas há momentos magistrais, sendo que esse começo de conto aqui é certamente um dos melhores que temos:

"Um dólar e oitenta e sete cents. Era tudo. E sessenta cents eram em moedas. Moedas economizadas uma a uma, pechinchando com o dono do armazém, o dono da quitanda, o açougueiro, até o rosto arder à muda acusação de parcimônia que tais pechinchas implicavam. Três vezes Della contou o dinheiro. Um dólar e oitenta e sete cents. E no dia seguinte seria Natal".

Uma outra frase que destaquei e que é reveladora do espírito de grande parte dos contos:

"Dulce morava num quarto alugado. Há uma grande diferença entre um quarto alugado e uma pensão. Num quarto alugado, os outros não ficam sabendo quando a gente passa fome".

O homem tinha uma boa capacidade de arremate dos contos, mas nem sempre acertava, às vezes a coisa não parecia muito verossímil e os críticos costumavam apontar a repetição de certas estratégias. Mas é um nome que merece ser mais lido.

10/12/2018 – RUBEM BRAGA

"Comprem, comprem!" A publicidade faz sua grande farra de fim de ano, e nós é que devemos pagá-la. Uma garrafa de uísque deixa de ser uma garrafa de uísque, é um mimo envolvido em cores mil, cercado de frases festivas e exclamações: assim todas as coisas perdem seu ar honesto, afetam uma alegria sem graça. E a burguesia faz surrealismo sem o saber. Que existe de mais louco do que receber votos de Feliz Natal e Próspero Ano Bom não de uma pessoa, mas de uma firma comercial, um banco, um ser jurídico? Não é o homem de empresa que nos saúda alegremente, de cristão para cristão; é a própria sociedade anônima que se faz afetuosa, que exprime os bons sentimentos que empolgam seu espírito de estatuto ou sua alma de balancete. É, digamos, a Coperval S.A., uma senhora visivelmente lírica, amante de legendas douradas sobre fundo azul, com uma letrinha sentimentalmente inclinada para a direita, flores e anjos, sinos a badalar. O coração da firma está batendo de afeto".

11/12/2018 – LITERATURA PERSA

É admirável como são poucas as literaturas publicadas decentemente no Brasil. A literatura persa é uma das solenemente ignoradas. Li informações sobre Mohammad-Ali Jamalzadeh e Sadeq Hedayat que os colocavam como contistas inspirados no que há de melhor no gênero, como Maupassant e Tchékhov. Mas existe alguma coisa deles publicada no Brasil? Nada. E mais uma vez eu fico a ver navios.

12/12/2018 – CARSON McCULLERS

Ah, Carson, querida Carson, como você foi cometer “O coração é um caçador solitário” tão jovem?! Aqui vai mais um trecho desse livro tão sensível e tão bonito: “Todos nós aqui reunidos sabemos o que é sofrer reais necessidades. Isso é uma grande injustiça. Mas existe uma injustiça ainda mais amarga do que essa - a de ter negado o direito de trabalhar de acordo com suas habilidades. A de trabalhar uma vida inteira inutilmente. A de ter negada a chance de servir. Muito pior do que tirar os lucros de nossos bolsos é roubar de nós as riquezas de nossas mentes e almas”.

12/12/2018 – E.T.A. HOFFMANN

Em “O reflexo perdido e outros insensatos”, há alguns contos mais difíceis, por conta das referências eruditas do autor, mas, quando ele acerta, ele acerta pra valer. "O homem-areia" é mais conhecido aqui no Brasil e é de fato um grande conto. Mas também "As minas de Falun" é um conto belíssimo e muito bem construído (só depois vim a saber, como dito mais para trás, que é a versão de conto de Hebel). Como curiosidade, há o conto "O quebra-nozes", que em geral as pessoas não sabem que era um texto do Hoffmann antes de virar balé do Tchaikovsky.

13/12/2018 – GRACILIANO RAMOS

Comecei a ler os contos de “Insônia”, mas eles não me atraíram (deram-me sono). Achei interessantes as reflexões interiores que perfazem todos os contos que li e o ambiente de uma certa “opressão” que os personagens sentem, mas a leitura não evoluiu para mim de uma forma agradável. O Graciliano tem a fama, que me parece justa, de escrever de forma mais simples, às vezes seca mesmo, coisa que muito me agrada. Nesses contos, percebi que ele também era chegado numa mesóclise. Naturalmente, isso não era posto ali como ornamento, apenas fazia parte do jeito de se expressar por escrito na época. O que se tornou irônico é que, hoje em dia, sim, a mesóclise virou ornamento de quem parecer mais culto, coisa que o velho Graça justamente combatia. Gosto mais das crônicas da viagem dele à Rússia.

14/12/2018 – CONTO POLICIAL

Terminei o “Maravilha do Conto Policial”. O livro começa muitíssimo bem, com o indispensável conto do Poe que deu origem a todo o gênero, “Os assassinatos da Rua Morgue”, seguido pelo Sherlock, através de Conan Doyle, em “A cara amarela” (que é o mesmo “A face amarela” que eu elogiei há poucos dias). Depois vem o originalíssimo “O problema da cela nº 13, de Jacques Futrelle, em que um superdotado faz uma aposta de que conseguirá escapar de qualquer cadeia em uma semana. Os meios pelos quais ele conseguiu isso são complemente inverossímeis, mas, que diabos, o conto é muito original e mantém o suspense. Em seguida tem a Agatha Christie, Poirot e o seu “Um problema de xadrez”, que me fez, mais uma vez, perceber o quanto eu gosto do Sherlock. E. C. Bentley aparece com o regular “O caso do conhecedor de vinhos” e Mignon G. Eberhart com o curioso “Crime no dia de São Valentim”. Do Edgar Wallace, devo confessar que não gostei de “O homem que queria ser feliz”, primeira coisa que leio dele. Estranhei um bocado “O esqueleto sem cabeça”, também primeiro conto que leio de Chesterton e o seu Padre Brown. “O colar da rainha”, igualmente o primeiro que li de Maurice Leblanc (tenho muitas dívidas literárias), pareceu-me bom, assim como “O mistério da Senhora Dickinson”, de Nicholas Cartes. Não fui muito com a cara de “Vento leste”, de Freeman Wills Crofts. Um dos que mais gostei, ao lado dos contos de Poe e Sherlock que eu já conhecia, foi “A casa da Rua Turk”, de Dashiell Hammett, que parece ser um precursor da literatura noir. A linguagem é objetiva e a ação é constante. Entretanto, dada a quantidade de violência, creio que dificilmente conseguiria ler três livros seguidos nesse gênero. A minha preferência é realmente pelo conto policial “intelectual”. Mas o conto do Hammett é bom, afinal. O livro termina com “O chá doido”, de Ellery Queen, e o nome vem bem a calhar, porque me pareceu um conto maluquinho, maluquinho. Em dado momento, cheguei a me perguntar se aquilo era realmente um detetive ou era uma sátira aos detetives. Mas no fim até que o detetive se saiu bem, apesar dos métodos pouco ortodoxos. Em suma, foi legal ler um pouco mais sobre esse gênero geralmente desprezado pela crítica literária. Eu percebi que, por mais que goste do Sherlock, há muita coisa nos seus derivados que não me apetecem. A partir de agora farei a distinção que citei, isto é, a da literatura policial “intelectual”, em face à “violenta”. Ah sim, devo reforçar também que senti a falta do Georges Simenon e do seu Comissário Maigret.

14/12/2018 – STANISLAW PONTE PRETA (SÉRGIO PORTO)

“A diferença entre delegado e comissário é justamente esta: o delegado ‘não está’ e o comissário ‘saiu um instante”.

15/12/2018 – CHESTERTON

Por coincidência, o primeiro conto do volume 9 de “Mar de histórias” foi outro de Chesterton e o Padre Brown. Mas quanta diferença! De fato, tive muito mais prazer lendo “O homem da galeria” do que aquele do “O esqueleto sem cabeça”. Esse conto de agora começa de forma bastante descritiva, o que muitas vezes me aborrece, mas achei que ele foi muito hábil ao descrever os personagens e suas sutilezas, de maneira que, apesar de a leitura se dar em um ritmo mais devagar nessa parte, o conteúdo não chegou a me aborrecer. Notei inclusive algumas sacadas irônicas que me arrancaram alguns bons sorrisos. E isso não é o tipo de coisa que eu esperaria de um “conto policial”: que ele seja divertido! No fim das contas, ao término do conto, foi realmente essa a impressão que o conto me deixou (e olhe que houve crime). Mas a revelação do mistério foi tão inesperada, e as conclusões que dele se tirou foram tão engraçadas que, no fim das contas, eu não apenas dei um sorriso, mas até uma pequena gargalhada. Como se não bastasse, no meio desse efeito, o conto ainda termina com uma alusão moral irônica e arrebatadora. Muito bom!

16/12/2018 – JAMES JOYCE

Depois de ter lido o conto “Um bazar”, li “Compensações”, a segunda coisa que já li de Joyce na vida. Se o primeiro me pareceu razoável, esse segundo me pareceu bom. Notei até mesmo um “quê” de literatura russa no conto. Quem sabe eu ainda leia “Dublinenses”, pois ali a linguagem e a estrutura ainda são as tradicionais. Provavelmente não lerei “Ulisses”, pois não estou à altura do livro e só tenho uma vida – não estou disposto a dedicá-la ao livro, coisa que, pelo que li, o Joyce pretendia que o leitor fizesse.

17/12/2018 – LUIGI PIRANDELLO

Li dois contos do Pirandello, que somaram a outros dois que eu já havia lido este ano. Se a impressão dos contos anteriores até havia sido mais ou menos boa, mas sem nada de especial, ela foi melhor agora com os novos contos. Foram eles o metalinguístico “A tragédia de uma personagem” e o ótimo “No hotel morreu um fulano”. Fique com vontade de ler um livro de contos só dele (esse é justamente o resultado esperado quando leio antologias de vários escritores: interessar-me pelos livros autorais deles). Achei muito boa a ideia dele fazer contos para os 365 dias do ano, embora isso não tenha sido concluído. Suas ideias no conto metalinguístico também me agradaram, a mim que não ali aquela peça famosíssima dele. Também gostei de algumas ideias do personagem que apareceu diante dele, e que aqui reproduzo:

- Somos seres vivos, bem mais vivos do que aqueles que respiram e que se vestem, menos reais talvez, porém decerto mais vivos. Nasce-se para a vida de tantas maneiras, meu caro senhor! Bem sabe, aliás, que a natureza se utiliza do instrumento da imaginação humana para prosseguir na sua obra de criação. Quem nasce graças a essa atividade criadora, com sede no espírito humano, é destinado pela natureza a uma vida muito superior à de um ser nascido do ventre mortal de uma mulher. Quem nasce personagem, quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode zombar até da própria morte, pois nunca há de morrer. Morrerá o homem, o escritor, esse instrumento natural da criação; não, porém, a criatura.

17/12/2018 – MURIEL BARBERY

Sobre “A elegância do ouriço”, eu até que gostei, mas, honestamente, prefiro o filme inspirado no livro, chamado “O porco espinho”. O livro tem um quê de ensaio, e no começo fica até difícil pensar que os personagens tenham vida prática, tão imersos estão no mundo das ideias. Depois a coisa começa a fluir. Percebe-se que a erudição que Muriel tenta colocar nos personagens é a sua própria. Não é muito “crível” que a adolescente Paloma e a concierge Reneé fossem tão eruditas como Muriel as apresenta. No filme, isso parece atenuado. São bem inteligentes, as duas, sim, mas não as superdotadas do livro. Gosto mais dos diários da Paloma. O filme tem pouco mais de 1h30 e foi tempo suficiente para colocá-lo entre os meus dramas favoritos, ao passo que o livro não consegue o mesmo feito em sua categoria. De toda forma, a história é bem marcante.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 17/12/2018
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