O Cavaleiro Inexistente e o Existir Social

O Cavaleiro Inexistente e o Existir Social

- Como é que não mostra o rosto para o seu rei?

- Porque não existo, sire.

O cavaleiro Inexistente, Italo Calvino.

Em meio aos paladinos franceses do exército de Carlos Magno havia um cavaleiro de armadura impecável em pleno desenrolar da guerra. Italo Calvino, que nunca poupou o fantástico nas suas surpreendentes histórias, usou a imagem de um cavaleiro invisível de matéria humana, mas presente diante do exército seja por meio de sua ilustre armadura branca ou ainda por suas virtudes que superavam as dos outros cavaleiros. Justamente por não existir, tal assustadora figura se mantinha presente em uma inexorável capacidade de realizar as funções que lhe eram designadas e muitas outras. Esse cavaleiro possuía um conhecimento profícuo nas artes que eram pertinentes à sua tropa.

Seu protagonista, Agilulfo, o cavaleiro inexistente, sugere uma alegórica relação com a perfeição no âmbito da conduta humana. Os demais combatentes, por existirem, ficavam exaustos das batalhas, choravam por algum motivo, se embebedavam com o intuito de aliviar as tensões da guerra, comiam demasiadamente e roncavam exauridos. Somente um homem destituído de carne e osso poderia ser tão rigoroso em seus modos, limpando incessantemente sua armadura, vigiando constantemente sua tropa, não dormindo e sequer comendo, apenas dividindo o espaço do jantar entre os convivas.

Estar acima dos demais, ao que parece lhe custava a ontologia do guerreiro, mas nem por isso deixou de conquistar o coração de uma jovem combatente, que, vestida de armadura e de uma audácia belicosa, se encanta com o cavaleiro tão peculiar e superior aos demais soldados. Bradamante era guerreira iniciada nos assuntos da guerra e do amor, pois havia se deitado com muitos homens do exército. Se ela pôde, dessa forma, perceber graves defeitos que aquelas pobres figuras portavam, pôde também vislumbrar no cavaleiro inexistente aquele que estaria a salvo do ordinário, da incompletude moral.

No entanto, posto é que esse amor não se consumaria, visto que um homem cujas desmedidas do amor não lhe estão asseguradas, jamais poderia dispensar amor a essa mulher. Bradamante se entrega ao apaixonado Rambaldo, jovem guerreiro e seduzido pelos encantos da amazonas. Finalmente, a moça deleita seu amor com as volúpias do risco, do “malgovernado” Rambaldo, um “reino a ser conquistado”. Talvez por serem estas as características não somente próprias do amor como da guerra, o guerreiro guiado pelo sentido de uma paixão se torna mais grave que aquele que é guiado pelo único sentido de existir para o seu grupo.

Uma das coisas que podemos nos deparar em análise na referida obra é, a despeito de muitas outras possibilidades de compreensão, o que se destaca em primeiro plano, ou seja, a condição do cavaleiro em contraste com suas ações. Se por um lado ele não existia como os demais, era ele mesmo, e por isso, que mais poderia se fazer presente, por não gozar das necessidades limitadoras de reles mortais.

Podemos evocar a compreensão corrente do nosso código moral de conduta. O sujeito, muitas vezes, descarta o que caracteriza seu “ser enquanto ser” em função da adequação ao status quo vigente. Ao abrir mão do que lhe torna individual, passa a viver exclusivamente em função das regras sociais num ilegítimo esforço para existir. É dessa forma que o cavaleiro que se encontrava acima dos demais em virtude de sua perfeição, convivia com uma condição essencialmente paradoxal: a limitação de não poder existir.