A estética “sado-masoquista” como manutenção do establishment

Recentemente o livro “50 tons de cinza” foi concebido como obra mais lida e comentada na e pela grande mídia. Este sucesso, ao que parece, se deu pelo teor sexual que envolve alguns fetiches e, sobretudo, práticas sado-masoquistas. No entanto, o termo “sado-masoquismo” advém das obras literárias de Marquês de Sade e foi incessantemente abordado pela psicanálise, por análises de perversões inseridas num contexto do regime totalitário, como é o caso, por exemplo, do filme do diretor italiano Pasolini, “120 dias de Sodoma” inspirado na obra deste escritor. Ao contrário da primeira, a obra de Sade foi hostilizada pela sociedade burguesa iluminista, sendo desprezada e posteriormente, relegada ao esquecimento por longo período. Destarte, o intuito deste artigo será analisar as condições favoráveis às aceitações e negações sociais em relação a uma e outra obra. Se por um lado, a obra do grande público leitor da atualidade lança mão do termo “sadomasoquismo”, em contrapartida, é derivada de outra que foi concebida como subversiva tanto em sua época como em dias hodiernos. Fato este que, por sua vez, provavelmente a impossibilitou – e impossibilita – ser amplamente conhecida e divulgada, apesar de sua incontestável qualidade.

***

Sabe-se que Marquês de Sade foi um libertino declarado, algo que era comum em sua época (BARBERO, p. 68). Apesar de ser comum, a literatura de Sade já era concebida enquanto subversiva, pois fora preso várias vezes, inclusive em hospícios. Nestes momentos de “insanidade” declarada pela sociedade, contudo, foi que Sade escreveu suas maiores obras, como Diálogo entre um Padre e um Moribundo e Filosofia na Alcova . Tais obras, entre as demais, não apresentavam tão somente valores erótico-pornográficos, mas chegavam a desenvolver verdadeiras análises sociais, “como o caso do Estado republicano baseado no crime” (BATAILLE, p.100), ou diálogos complexos nos quais fundamenta a inexistência de um Deus bom e justo, como no caso do Diálogo Entre um Padre e o Moribundo. No entanto, o cenário que serve ao seu pensamento perturbador, é o mesmo onde ocorrem incestos, pedofilias, orgias e práticas homossexuais. A despeito da vulgaridade que tal cenário possa invocar, Sade demonstra domínio argumentativo e transpõe as barreiras da pornografia, colocando em cheque concepções e valores morais, religiosos e filosóficos com o rigor dos aspectos a que cabem tais temas.

Por outro lado, temos uma obra de vultosa tiragem, lida por pessoas das mais diferentes idades, classes sociais e profissionais. Trata-se de uma obra atualizada em nossos dias, que parece ilustrar o Geist de nosso tempo, nossas formas de se relacionar com o outro e compreender o mundo, segundo uma sociedade estritamente capitalista e consumista. Cinquenta Tons de Cinza apresenta um gosto pela estética sadomasoquista, mas ao contrário da obra sadeana, é conservadora e não transpõe as cenas sexuais, tampouco transgride leis estabelecidas moral e legislativamente. Em seu enredo, o livro apresenta um contrato que uma jovem (completa maioridade, diga-se de passagem) deve assinar, permitindo que seu amante seja seu carrasco e dominador, e que a ela seja relegada a condição de submissão.

Os protagonistas, no entanto, acordam que nada acontecerá caso o outro não queira. Esta relação de negociação soa paradoxa e artificial. Existe um contrato onde os assinantes acordam práticas e, segundo o próprio contrato, não é permitido contrariar as vontades das partes. Parece que, a necessidade de um contrato já pressupõe que haja uma predisposição à violação - de qualquer das partes - da lei em questão, pois por isso que se justifica sua existência. Em outras palavras, a liberdade negativa, coercitiva, assume um caráter de permissividade onde a proibição consiste em assegurar unicamente as vontades dos constituintes daquele contrato. Sendo assim, seria desnecessário que houvesse a necessidade de um contrato sendo que a cada qual, cabe a realização exclusiva de seus desejos.

A comunidade BDSM , inclusive citada na referida obra, adota este princípio para as suas práticas, ou seja, contratos sexuais, entre um submisso e um dominador, que se baseiam no lema “sexo seguro e consensual” (BARBERO, p.75). Curiosamente, as obras de Sade traziam também teores legislativos onde a sociedade do crime deve obedecer à lei. Como na passagem que se segue,

“Nunca se espante, querida, dos mais odiosos crimes, do que houver de mais sujo, mais infame, mais proibido: é isso justamente que aquece a imaginação e nos faz gozar completamente até o espasmo supremo”.

Filosofia na Alcova, p.23

Esta lei é a lei do desejo, da natureza, deve estar acima de qualquer padrão moral, de virtudes, de decência, ou seja, das leis do Estado, esta é a lei do gozo, onde o que interessa é o gozo e unicamente ele. De um lado temos uma sociedade baseada em condutas que vão de acordo com o sentido do Estado, e de outro, a proposta sadeana de rompimento com a manutenção de uma sociedade baseada em leis morais.

As propostas de Sade de um Estado baseado no crime e não nas convenções sociais, morais e políticas não foram elevadas à estatura dos assuntos relevantemente filosóficos até a década de 60, quando surgiu um grupo de reivindicação do resgate de suas obras (BARBERO, p.67). Como legado deste movimento, o texto Kant com Sade, de Lacan, conferiu um tratamento filosófico ao pensamento sadeano ao compará-lo com o filósofo iluminista a partir de seu imperativo categórico . De acordo com esta comparação, a obra de Sade apresentaria o “imperativo do gozo”. Este imperativo do gozo, provavelmente anunciava, já no iluminismo, as bases dos valores sociais contemporâneos. Esta análise é desenvolvida por Vladimir Safatle, em sua obra Cinismo e Falência da Crítica.

Segundo Safatle, (2008, p.130) a figura do pai tradicional em Freud foi sendo substituída pela figura burocrática do Estado. A “imago paterna de um pai que faz convergir imperativos de repressão e sublimação” (SAFATLE, ano 2008, p.130) cai em declínio, agora, ela está a serviço da lei de um Estado capitalista, se orienta segundo os ditames de uma sociedade pautada em valores de consumo. Safatle cita a consideração de Foucault (1981) acerca das formas de processos disciplinares que perdem a característica “controle-repressão” e assume a faceta “controle-estimulação”, como por exemplo, “apresente sua sexualidade, mas no interior de formas socialmente fornecidas e codificadas pelo mercado” (SAFATLE, ano 2008, p.132). O trecho que se segue é a descrição de um dos protagonistas do referido best seller e tem a finalidade de ilustrar como, por exemplo, tal obra segue este padrão:

Vestido assim, sem dúvida não parece um multimilionário. Parece um menino extraviado, possivelmente uma rebelde estrela de rock ou um modelo de passarela. Suspiro por dentro, desejando ter uma décima parte de sua elegância. É tão tranqüilo e controlador...

50 Tons de Cinza, p.112

Diversamente do trecho acima citado, há uma descrição de um dos principais personagens do castelo de 120 Dias de Sodoma, um dos livros de Sade:

O presidente de Curval era o decano daquela sociedade. Com quase sessenta anos e singularmente consumido pela devassidão, ele não apresentava quase nada mais que um esqueleto. Era grande, seco, olhos fundos e apagados, uma boca lívida e malsã, o queixo erguido, o nariz comprido. Coberto de pelos como um sátiro, costas retas, nádegas moles e caídas que pareciam mais panos sujos caindo no alto das coxas... Curval era de tal modo mergulhado no atoleiro do vício e da libertinagem que se lhe tornou impossível ter outros propósitos que aqueles. Ele incessantemente tinha as mais imundas expressões na boca como no coração e as intercalava o mais energeticamente com blasfêmias fornecidas pelo verdadeiro horror que tinha ao exemplo de seus confrades por tudo que dizia respeito à religião. Esta desordem de espírito, aumentada ainda pela embriaguez contínua na qual ele gostava de se manter, lhe dava há alguns anos um ar de imbecilidade e de embrutecimento que fazia, supunha ele, suas mais caras delícias.

120 dias de Sodoma, p. 10

Como vimos anteriormente, a obra de Sade, ao passo que propunha a ruptura com as regras de condutas morais, anunciava a necessidade do atendimento incessante e urgente do gozo a qualquer preço. Esta postura assume caráter dicotômico uma vez que, inserida num Estado que está a serviço do gozo, se realiza mediante sua normatização. Esta normatização gera e justifica toda uma “economia libidinal” e “processos disciplinares” (SAFATLE, ano 2008, p.132). A economia libidinal oferece, entre outras mercadorias, artigos fetichistas atribuídos às práticas sadomasoquistas (como chicotes, algemas, etc) encontradas em sex shops. Os processos disciplinares, por sua vez, obedecem aos ditames da moda que permitem a exposição sexual ou do nu, desde que se exponham corpos perfeitos, jovens e desejáveis. Como sugere Safatle, estes são “fenômenos sociais em que a suspensão transgressora da norma e conservação da norma ordenadora se confundem” (SAFATLE, ano 2008, p. 133).

Finalmente, foi a psicanálise quem transformou o elemento de agressividade latente em nossas condutas, quando observadas do ponto de vista sexual, em um conceito derivado de uma obra literária, em virtude de sua mensuração. Em um segundo momento, este conceito foi aos poucos perdendo sua essência; da impactante obra pervertedora, restaram, para as novas gerações, o conhecimento de uma estética que promove um vasto mercado de consumo libidinal. Mercado este que, dado o sucesso de sua engenharia disciplinar, serve-se da referência a Sade como uma forma a mais de gozar somente. Este imperativo rege o seio de uma sociedade conservadora de tal sorte que não é capaz de preparar leitores ou escritores aptos a aventurarem-se em uma obra que coloque em xeque as bases institucionais.

BIBLIOGRAFIA

BATAILLE, Georges. A literatura e o mal; tradução Suely Bastos. – Porto Alegre: L&PM, 1989.

BARBERO. As práticas sadomasoquistas na sociedade contemporânea. A PESTE Revista de Psicálise e Sociedade, v. I, p. 65-78, 2009.

JAMES, E.L. 50 tons de cinza – Soryu, 2012.

LACAN, Jacques. Kant com Sade. In: Escritos 2 (1966/1971) México. D.F: Siglo Veintiuno Editores, 1989 (15. Ed.), v.2.

LEITE, Flamarion Tavares. 10 lições sobre Kant. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

SADE, Marquês de. A filosofia na alcova; trad. Martha A Haecker, Rio de Janeiro: JCM.

_______________ 120 dias de Sodoma, 2º Ed. Trad. João M.P. de Albuquerque, São Paulo: Hemus,1969.

_______________ Diálogo entre um padre e um moribundo; trad. Alain François e Contador Borges – Iluminuras, 2001.

SAFATLE, Vladimir. Cinismo e falência da crítica – São Paulo: Boitempo, 2008.