Acerca de "Trajetos e memórias" de Renato Ortiz

Trajetos e memórias
Renato Ortiz
Editora Brasiliense – 1ª edição – 2010

Corria o ano de 1959 e eu cursava o ginásio no Colégio Sete de Setembro, na Avenida Lins de Vasconcelos, no bairro do Cambuci, em São Paulo. O fim da minha infância e começo da adolescência coincidia com o fim dos anos cinquenta que, depois, viriam chamar-se anos dourados. Em plena campanha presidencial para a sucessão de JK, as rádios, todos os dias e incansavelmente, tocavam os jingles dos dois principais candidatos. De um lado o “varre, varre vassourinha, varre, varre a bandalheira...” do Jânio Quadros e, do outro lado, o “essa vassoura é de piaçava americana, mas a espada do nosso marechal é de aço nacional” do Lott.
Meu professor de matemática era simpatizante do marechal e não poupava ocasião de fazer-lhe proselitismo político.

Numa longínqua manhã daqueles idos, ouvi desse professor – não sei se Olavo ou Otávio, já não tenho muita certeza – que “livro que presta a gente não empresta”. Não sei mais a propósito do que esse assunto veio à baila, mas eu era desses meninos questionadores e dispostos a uma polêmica por qualquer coisa. Quis ser malandro e rebati com um “minha mãe me ensinou que só o que não se empresta é pente e escova de dente”. E era verdade, ela realmente havia repetido isso para mim, e mais de uma vez. Ele ponderou de modo filosofal, falando para todos nós: “Vocês não devem acreditar em tudo só porque a frase tem rima e fica fácil de memorizar; muitas vezes as palavras são usadas para esconder mais do que para revelar a verdade”. E falou sobre os jingles que as rádios tocavam, mas eu confesso que pouco entendi dessa parte. Ele explicou, calma e pausadamente, que deveríamos refletir sobre a nossa relação de coisas que se poderia e deveria emprestar e coisas que era melhor guardar só para si. Inconformado, insisti no pente e na escova de dente. Foi um erro do qual meu arrependimento foi instantâneo. “Tudo bem – disse ele – quer dizer que você está disposto a emprestar sua namorada para algum colega da classe?” Todo mundo caiu na risada.
Se eu pudesse teria, ali mesmo, aberto um buraco e me enfiado dentro dele. Mas o professor foi nobre e generoso; interrompeu o alarido da molecada com um “podem tirar o cavalinho da chuva que ele não vai emprestar a namorada dele para ninguém, prestem atenção no que lhes vou dizer”.
E fez a apologia que comparava o livro e a namorada; coisa que eu nunca mais esqueci.
Disse que um livro especial só se deve emprestar para alguém especial e que cuide dele como nós cuidaríamos. Às vezes o livro traz até o abraço do autor na dedicatória e abraço não se transfere para qualquer um. Com um bom livro a gente aprende muito e curte momentos de intimidade e de sonho como com uma namorada e, por isso, deveríamos todos respeitar os nossos livros tanto quanto as nossas namoradas.
Lembro que quando o sinal tocou o fim da aula, ele falava ainda qualquer coisa sobre Saint Exupéry, a raposa, o Pequeno Príncipe e o fato da gente ser responsável por aqueles que cativa.
Eu achei aquilo tudo o máximo! Foi provavelmente a melhor aula de ‘matemática’ que eu tive na vida.

Essas reminiscências me vieram à mente logo no início da leitura do livro de Renato Ortiz. Trata-se de um texto memorial escrito com o objetivo específico de obter a Livre-docência, uma vez que o autor realizou todos seus estudos de graduação e pós-graduação na França.
O volume que me chegou às mãos foi-me emprestado pelo amigo Aldo – Dr . Aldo Ennos de Moraes – e tem, inclusive, uma dedicatória a ele endereçada pelo autor. Eis o porquê de eu ter começado este arremedo de resenha com aquelas lembranças do distante ano de 1959.
O texto do professor Ortiz foi, para mim, uma grata surpresa. Muito bem elaborado, correto, profundo sem denotar qualquer traço de pedantismo e, acima de tudo, com invejável qualidade literária. Sua escrita é despojada, escorreita, agradável de ler. Há longos parágrafos – como no começo do primeiro capítulo, PENTIMENTO E MEMÓRIA – que são pura poesia. Tomo a liberdade de transcrever este trecho:
“As marcas da memória encerram uma ambiguidade latente, são indeléveis e opacas, uma névoa espessa mascara os traços de suas pegadas. As recordações não são nunca límpidas, cristalinas, elas repousam no fundo de uma tela recoberta por camadas superpostas de tinta. Diz-se que o pentimento de um quadro é o vestígio de uma composição anterior, as mudanças feitas pelo pintor, seu arrependimento, encobrem os passos do desenho original. A trilha de seu passado somente é revelada através de uma cuidadosa recuperação arqueológica. Revelar o pentimento da memória é uma tarefa delicada, é preciso cuidadosamente raspar a superfície visível de sua expressão, as marcas que encontramos, ocultas à primeira vista, testemunham uma intenção apagada pelo tempo.”
Em AS LINHAS DO DESTINO, ao falar de Pierre Bourdier e da noção de ‘habitus’ como modus operandi, como predisposição para ir numa determinada direção, Ortiz escreve:
“A formação do meu ‘habitus’ orientava-me para tudo o que não fui. Desvendo, às vezes, no olhar dos que me foram próximos, um certo espanto em relação ao meu descaminho. Mesmo já tendo sobre ele refletido, reluto em aceitar uma explicação que o justifique inteiramente. (...) Minha voracidade de leitor, provavelmente uma estratégia para escapar ao meu entorno, não conseguia diferenciar os autores e os textos na poeira das letras que sobravam em meus olhos. (...) Há, pois, um hiato entre conhecer e reconhecer.”
Ao seguir na leitura, vou-me identificando com Ortiz ao descobrir um percurso comum por autores que também visitei insistentemente desde a juventude: Voltaire, Schopenhauer, Nietzsche, Russell, Will Durant.
Os capítulos seguintes, fortemente autobiográficos, fazem transparecer uma linguagem quase lúdica e um jeito de texto jornalístico gostoso de ler.
Em CULTURA E POLÍTICA, Ortiz nos fala de sua chegada a São Paulo, vindo do interior, suas expectativas e esperanças.
Em SOB O SIGNO DE MAIO DE 1968 ele nos conta de sua ida para a França e da aventura que isso representou. Há descrições antológicas, como a que Ortiz faz de François Chatêlet:
“Ele foi um professor notável, com um sentido de cena que poucos atores possuem. Gesticulava e caminhava em círculos pela sala e, teatralmente, ao apagar a bituca do cigarro no pé da mesa, deixava os ouvintes mesmerizados”.
Em ROGER BASTIDE ENTRE A FRANÇA E O BRASIL, Ortiz aborda de um novo ângulo o instrumental antropológico:
“Meus estudos sobre umbanda levaram-me a ver as coisas de outra maneira, afastando-me dessa visão idealizada do mundo. A questão não é saber “quem é o brasileiro”, como ingenuamente procuravam responder os escritos de alguns autores, mas qual a representação de sua identidade. Importa entender quem são os artífices, quais os seus interesses, em que condições ela é elaborada. O tema da autenticidade, decorrente de uma visão reificada da realidade, é um falso problema, pois a identidade é uma construção simbólica que se faz em relação a um referente. Os referentes são múltiplos, a religião, a nação, o grupo (...) Os intelectuais têm um papel decisivo nesse processo (...) Eles são capazes de dar organicidade ao discurso que interpreta o social, produzem sentido e orientam a ação.”
Ortiz nos fala também do dia em que procurou Bastide para que este lhe indicasse um orientador para sua tese acadêmica sobre umbanda:
“Compenetrado, apresentei-lhe o projeto e expliquei minhas intenções, disse-lhe que estava a par de sua decisão de não mais aceitar novos alunos e polidamente perguntei-lhe se porventura conhecia alguém que tivesse interesse no assunto. ‘Mais bien sûr’ foi a resposta e, após uma longa pausa, alimentando a minha ansiedade à espera que eu lhe indagasse pelo nome da pessoa, sorriu e disse: ‘c’est moi’.”
É com uma reverência quase religiosa que Ortiz se refere ao seu velho professor ao reproduzir, entre aspas, um trecho de uma conferência – Modernité e Contre-modernité – cuja temática era ainda umbanda e candomblé, em que ele nos diz que o mestre retoma o mito de Prometeu. Suponho que essa versão em Português deva ter o dedo do Ortiz. Eis o texto de Bastide: “Para nós ocidentais, a civilização não é, como na África, um presente trazido aos homens pelos deuses. Ela é fruto da revolta do homem. Quer dizer, enquanto na África a ordem social é um prolongamento da ordem cosmológica, com o Ocidente, como dizem os antropólogos, a cultura já não mais deriva da natureza, não mais a prolonga, mas se superpõe a ela, a contrasta. No entanto, não devemos esquecer que os gregos conservaram a noção de ‘ubris’, de desmesura, na sua filosofia. Eles inventaram Prometeu, mas também o abutre enviado por Zeus, que vem puni-lo por seu sacrilégio, devorando-lhe o fígado durante décadas e séculos. A ‘ubris’ é a desmesura, e os deuses não querem que os homens ultrapassem um certo limite. Eles aceitam o progresso, mas, quando este torna-se grande demais, enviam castigos àqueles que fazem a humanidade progredir”.
O capítulo seguinte, UM RITUAL DE PASSAGEM, é particularmente sedutor porque habilidosamente Ortiz nos enreda na sua trama memorial suscitando em nós outra linha de perspectivas. Pertence a esse capítulo esta passagem de plena atualidade:
Temos entre nós o hábito de preguiçosamente esquecer as coisas indigestas, dizem ser isso um traço de nossa idiossincrasia. Com o passado militar não foi diferente. Após a redemocratização do país, as lembranças dolorosas de nossa memória coletiva começam a fenecer: a violência da repressão policial, os crimes de tortura, os assassinatos. Convenientemente, já não mais recordamos que a grande imprensa, hoje tão eloquente em relação à democracia, foi um elemento ativo na legitimação do golpe militar”. A seguir, Ortiz nos conta de sua experiência fracassada em João Pessoa, e aproveita para introduzir o suspense na narrativa.
Do capítulo OS NICHOS DA MEMÓRIA, destaco este belo trecho:
“Recordar é inserir-se no tempo pretérito, mas há nesse intuito uma dimensão à primeira vista despercebida, o espaço. (...) a memória necessita de nichos espaciais para se incrustar. Os objetos são a moldura que envolve nossas recordações, a casa, os móveis, os quadros, a maneira como estão arrumados, constituem o contorno no qual as lembranças se encaixam. Os muros, as ruínas, as pedras da cidade são lugares de memória, ao contemplá-los somos projetados no tempo que se esvaiu”.
Em UNIVERSIDADE E POLÍTICA, Ortiz fala de sua experiência de vida sindical em BH e OS BONDES DE CHICAGO é quase todo dedicado a Florestan Fernandes, a quem chama de herói fundador da sociologia brasileira.
Por fim, em AS COSTUREIRAS E O OFÍCIO INTELECTUAL, Ortiz nos conta do tempo que passou nos Estados Unidos. A comparação que ele estabelece entre o labor intelectual e o ofício de costurar é muito saborosa:
“O ofício intelectual pode ser comparado a um tipo específico de afazer doméstico: a costura. (...) Labor artesanal no qual se revela a individualidade e a experiência de quem o executa. Colocar a linha na agulha, combinar os panos, efetuar o corte, são operações delicadas, exigem paciência e concentração. (...) Quando uso cortar e colar, partindo um pedaço do meu texto para inseri-lo numa outra posição, retomo as operações de corte e costura. (...) A cada momento, reedito no vídeo a página escrita, infinitamente eu a corto, a mutilo, corrigindo e alinhavando as ideias. (...) O trabalho intelectual deve romper as fronteiras do senso comum, mas para isso é preciso desconfiar da ilusão do real”.

Se houvesse escrito o livro este seria o parágrafo com que eu o encerraria: Nenhuma lembrança é pétrea quando filtrada pela memória das reminiscências e, não só não é imune aos efeitos da passagem do tempo, como é sujeita as restaurações que o presente nela vai depositando.
luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 07/05/2013
Reeditado em 18/05/2013
Código do texto: T4277955
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