Liberdade de expressão Versus Liberdade de imprensa ou “His Master’s Voice”

Antigamente a RCA utilizava o slogam "His Master's Voice"  (em português, A voz do dono), e a figura inconfundível do cachorrinho Nipper. Era ainda o tempo dos gramofones (e, logo depois, das vitrolas e bolachões de 78 rpm's) e ainda não se conheciam expressões como mídia, aldeia global e outros badulaques. Talvez nossa imprensa tupiniquim devesse, hoje, resgatar o slogam. Como o nosso querido Nelson Rodrigues costumava dizer, o brasileiro parece que continua a sofrer de complexo de vira-latas e nossa mídia é o exemplo pronto e acabado disso quando reproduz a voz de seu dono, seja o dono do jornal ou o dono do dinheiro que o financia. E quem já não ouviu - e mais de uma vez - frase do tipo se 'o fato não nos favorece, imprima-se a versão'?

Há algum tempo, logo após a leitura do livro “Liberdade de expressão versus Liberdade de imprensa – Direito à comunicação e democracia”, do professor Venício de Lima, postei no meu blog http://lucabarbabianca.zip.net um singelo soneto pontuando o que acredito ser o cerne do pensamento do professor Venício, e que a seguir reproduzo:

LIBERDADE DE EXPRESSÃO VERSUS LIBERDADE DE IMPRENSA

Liberdade de expressão e de imprensa
são expressões autônomas, distintas;
pois se a primeira é, por todas as tintas,
direito de dizer o que se pensa,

a segunda se expressa pela mídia,
dona dos meios de comunicação;
redes de rádios, jornais, televisão,
e nos prende nas tramas dessa insídia.

Imprensa é empresa, é instituição
e um marco que a regule tem que haver.
Esta é a pergunta que quero fazer:

- A quem interessa a confusão
entre os termos imprensa e expressão?
- Ouso dizer que aos donos do poder.

Como o professor Venício esclarece no seu texto, liberdade de expressão (do Inglês Freedon of Speech) diz respeito ao direito humano fundamental de fazer uso da palavra; liberdade do indivíduo/cidadão de externar seu pensamento. Liberdade de imprensa (do Inglês Freedon of Press) diz respeito à liberdade de empresas comerciais (genericamente identificadas como imprensa ou mídia) de publicar conteúdo que considerem informação e/ou entretenimento. Como se vê existe uma notória diferença entre os termos e não se pode falar em liberdade de expressão e de imprensa como se significassem a mesma coisa.

O bom senso exige que se aprofunde a discussão sobre o tema e não apenas para conter eventuais abusos da mídia, como o emblemático caso da Escola de Base da Aclimação, mas até para cumprir os dispositivos constitucionais que proíbem a existência de monopólios e oligopólios que impedem a democratização da comunicação. A legislação ficou anacrônica ou virou letra morta: a Lei de Imprensa, da ditadura, Lei 5250/1967, foi derrubada no Supremo Tribunal Federal em 2009, e o Código Brasileiro de Comunicações é de 1962 e tem, portanto, mais de meio século, ou seja, até para atualizar a legislação é preciso que a sociedade discuta e examine exaustivamente a matéria.

Em fins do ano passado, Dilma Rousseff, instada mais uma vez a se manifestar sobre o tema, disse textualmente “Mesmo quando há exageros, e nós sabemos que eles existem, é sempre preferível o ruído da imprensa livre ao silêncio tumular das ditaduras”. É óbvio que nenhum democrata se sentiria envergonhado de ter dito tais palavras e, tampouco, constrangido de subscrevê-las, mas ocorre que a presidente parece ter ficado refém de sua própria frase de efeito, esquecendo-se de que já na cerimônia de posse na presidência, jurou cumprir a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

Aquela frase não consta do texto constitucional; ao invés dela, o que está ali expresso no título VIII, Da Ordem Social, Capítulo V, Da Comunicação Social, Art. 220 é: A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
§ 3º - Compete à lei federal:
I. regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, a faixas etárias a que não se recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre inadequada;
II. estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio.
§6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de licença de autoridade
.
Negritei propositalmente o parágrafo 5º porque ele parece ser o grande, o enorme empecilho para que a sociedade civil possa discutir com liberdade o tema. Por causa dele é que até hoje o art. 220 não está regulamentado. Não interessa aos donos das grandes corporações de mídia do país, àqueles que de fato detém o monopólio do setor. Para criar uma cortina de fumaça em torno dos seus verdadeiros propósitos, os barões da mídia insistem em falar em censura, mas não é disto que se trata, uma vez que o poder de censura já lhes pertence hoje. O que se quer tratar é da democratização dos meios de informação, direito de todos, direito da cidadania.

O professor Venício Lima diz textualmente (pág. 86) que “ Nos anos 1990, cerca de nove grupos de empresas familiares controlavam a grande mídia. As famílias eram Abravanel (SBT), Bloch (Manchete), Civita (Abril), Frias (Folhas), Levy (Gazeta), Marinho (Globo), Mesquita (O Estado de São Paulo), Nascimento Brito (Jornal do Brasil) e Saad (Bandeirantes). Hoje esse número está reduzido a cinco. As famílias Bloch, Levy, Nascimento Brito e Mesquita já não exercem mais o controle de seus antigos veículos”.

E não é demais lembrar que a grande maioria, senão a totalidade dessas concessões, provém do período autoritário. Os mais velhos devem lembrar do tempo em que o Sílvio Santos, nas tardes de domingo, cantarolava seu bordãozinho "O Figueiredo é coisa nossa!" e outras babaquices lambe-botas.

Fábio Konder Comparato, no prefácio do livro do professor Venício, é enfático: “ Se, numa sociedade de massas, as opiniões, ideias, protestos ou propostas só podem ser manifestados publicamente através dos meios institucionais de comunicação social, é evidente que esse espaço, por natureza público, não pode ser apropriado por particulares, atuando em ambiente não regulamentado.”(grifo nosso). E acrescenta, mais à frente: “ É preciso lembrar que a globalização capitalista do final do século passado engendrou uma enorme concentração do controle privado das empresas de comunicação de massa. Nos Estados Unidos havia, em 1983, cinquenta empresas dominantes no mercado de imprensa, rádio e televisão; hoje, há apenas cinco.

Atualmente no Brasil, apenas quatro megaempresas dominam o setor de televisão: a Globo controla 342 veículos; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; a Record, 142; e cada uma dessas ‘redes’ representa um segmento de um grupo, que explora também o rádio, jornais e revistas. (...) Hoje, quem lê um dos nossos grandes matutinos leu todos os outros. Tirante algumas originalidades marginais, há absoluta convergência na defesa do capitalismo e na desregulamentação do setor de comunicação social. A escolha dos fatos as ser noticiados, ou dos assuntos a ser comentados – a famosa agenda setting dos norte-americanos – é basicamente a mesma. Até o estilo jornalístico, antes bem diverso conforme os periódicos, é hoje fastidiosamente homogêneo. (...) A apropriação empresarial dos meios de comunicação de massa inverteu os papeis: de instrumentos de contrapoder, ou garantias da liberdade de expressão, eles passaram a compor o complexo do poder estabelecido, manipulando a opinião pública e fazendo com que os diferentes órgãos do Estado – o Executivo, o Congresso Nacional e até mesmo os tribunais – se inclinem diante de suas exigências. (...) A atual inversão de papeis fez com que o poder de censura passasse das autoridades estatais para os próprios órgãos privados de comunicação social”.

Ao longo do livro o professor Venício, reconhecida autoridade brasileira no assunto, com doutorado e pós-doutorado em comunicação pela University of Illinois e pela University of Miami-Ohio, coloca em debate questões relevantes, como "Quem ameaça hoje a Liberdade de Imprensa?" explicando: "Inicialmente, a ameaça vinha do Estado absoluto, onde o poder do monarca era considerado de origem divina. Religião e poder temporal se confundiam. Com o passar dos séculos e o surgimento da democracia, o poder absoluto foi sendo substituído pelo Estado Democrático de Direito. Mesmo assim, o poder do Estado 'autoritário' continuava a ser a grande ameaça à liberdade de imprensa. A imprensa, no entanto, acabou por se transformar em mídia - um grande negócio. A partir daí, a origem da ameaça à liberdade de imprensa deixou de ser somente o Estado. Os grandes jornais passaram a fazer parte de conglomerados empresariais multimídia com amplos interesses econômicos e políticos e eles próprios se constituíram em atores importantes na disputa pelo poder nas sociedades democráticas. A ameaça à liberdade de expressão passou a vir não somente do Estado, mas também desses grandes conglomerados. (...) No Brasil, opera-se uma inversão conceitual que tem substituído o cidadão pelas empresas de mídia. Estas deveriam ser um instrumento da liberdade de expressão individual de cada cidadão, e não o meio e o fim da liberdade de imprensa. Entre nós, historicamente, uns poucos grupos controlam o que deveria ser democraticamente controlado por todos: a liberdade de expressão. Precisamos, portanto, dar um passo à frente e discutir o papel da mídia em termos do 'direito à comunicação'. Este é um direito de mão 'mão dupla' que supera conceitualmente a unidirecionalidade do direito à informação e deve ser considerado como um direito fundamental do homem, como os direitos à saúde ou à educação".

Questões como "A autorregulamentação é suficiente para proteger o cidadão do monopólio exercido pela propriedade cruzada dos meios de comunicação?", "Existe jornalismo independente?", "O que significa controle social da mídia ou Accountability?" são exaustivamente dissecadas ao longo das páginas do livro. Com respeito a essa última pergunta, o professor podera: " A ideia de accountability como controle social foi um princípio inserido na Constituição de 1988 que vem sendo adotado, com relativo sucesso, em vários setores de políticas públicas, sobretudo na educação e na saúde (...) sem que ninguém tenha dúvidas de que se trata de um mecanismo democrático de gestão que funciona normalmente no Estado de Direito. (...) Quando se fala em controle social da mídia, por óbvio, refere-se diretamente apenas àqueles serviços públicos de radiodifusão sonora de sons e imagens, exercidos diretamente pela União ou cuja concessão foi outorgada à iniciativa privada. Como na educação e/ou saúde, trata-se, portanto, da criação de mecanismos de  accountability  que permitam à sociedade, através de representantes democraticamente eleitos, acompanhar, verificar e avaliar se as políticas públicas do setor, executadas diretamente pela União ou por concessionárias dos serviços públicos por ela outorgados, cumprem as normas definidas na Constituição e nas leis".

O jornalista Fábio de Oliveira Ribeiro sintetizou com rara felicidade: (O livro) “dá um amplo panorama histórico do debate sobre a liberdade de imprensa no mundo e no Brasil e contribui para desfazer os mitos que tem sido criados e divulgados pelas empresas monopolistas de mídia brasileiras. Apesar de tratar das questões filosóficas e jurídicas delicadas o autor adotou uma linguagem acessível. Portanto, este livro é uma grande contribuição teórica e prática para a modernização da imprensa no Brasil”.

luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 02/05/2013
Reeditado em 10/05/2013
Código do texto: T4270649
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