EU E TU ENQUANTO HOUVER ISSO

EU E TU – MARTIN BUBER

A referida obra de Martin Buber tem seu foco central nas inter-relações humanas. Tendo em vista as áreas do conhecimento com as quais Buber mais se destacou, são elas a filosofia, pedagogia e teologia, é possível notar o quanto esta obra se figura em tais influências. Seu texto possui rigorosa dialética e conceitos cuja demanda é filosófica, assim como também apresenta relação com a questão do desenvolvimento cognitivo e ainda um viés teológico. Sua obra é divida em três partes, em que abordarão, principalmente e nesta mesma ordem, a relação do homem com as palavras princípio EU-TU e EU-ISSO, o processo construto-cognitivo que amplia a experiência e finalmente, a realização da relação no Tu eterno através do Tu inato.

EU-TU e EU-ISSO são dois conceitos derivados das palavras-princípio. Para Buber, o homem vive uma duplicidade em sua realidade que advém de sua própria atitude dual. Dessa forma, suas relações dúbias se dão através das palavras-princípio ou sua capacidade de proferi-las através do que denomina EU-TU e EU-ISSO. Onde, EU-TU está circunscrito na dinâmica da relação, da intersubjetividade, extrapolando a linguagem e o domínio da causalidade. Já o EU-ISSO, é a experiência do ser, é aquilo que pode ser mensurado, classificado, denominado, entre outras formas de entendimentos que remetem a utilização e experimento. É importante destacarmos que Buber considera, em sua obra, as percepções espaciais e temporais nestes conceitos. Para o filósofo, o EU-TU está no instante, onde rapidamente se torna EU-ISSO; por sua vez, o EU-ISSO remete sempre o passado, o que foi vivenciado, e aquele que se contenta com suas experiências, se regozija mediante a mediocridade da relação que “não é”, se privando, concomitantemente, das experiências que o EU-TU, lhe podem acrescentar ao espírito, que por sinal, são para a compreensão desse pensamento, a verdadeira essência humana, o que torna um homem.

Na segunda parte deste livro, Buber aborda as relações humanas com a palavra-princípio EU-ISSO historicamente. Admite aqui que as antigas civilizações possibilitaram a observação de que a experiência do homem é do ser correspondente destas mesmas e de qualquer outra interferência “externa” de um outro que possa surgir. Dessa forma a história nos revela um processo de progresso no tocante ao desenvolvimento de objetos e à medida que o homem desenvolve sua capacidade de experimentar e utilizar esses objetos em quantidade e dinamicidade, maior é sua relação com o EU-ISSO em detrimento de sua relação com EU-TU. É importante avaliarmos que a modernidade, que proporcionou ao homem um grande desenvolvimento e preocupação com a relação EU-ISSO, o tornou debilitado no sentido de proferir a palavra princípio EU-TU. Contudo, a especulação buberiana nos atenta para o fato de que a matéria em si não é má, mas o problema é quando apenas esta passa a pretender ser aquilo que existe. No mundo moderno, regido pela Economia e pelo Estado, onde aquela tem um princípio da utilização e este, o da dominação, o homem se vê facilmente deprimido, destituído de sua potência de proferir a palavra-princípio EU-TU.

Para além das relações humanas, há uma espécie de universalidade, que corresponde à Verdade Una que é o Tu eterno. O Tu eterno é a possibilidade do encontro em sua verdadeira expressão, o EU-TU inato, Deus. Quando se invoca Deus, se invoca o Ele mesmo do ser. Mas a relação com o Tu eterno, quando é racional, traduzível, com o aporte de vários nomes, este passa a linguagem do ISSO. A relação é tão importante na obra do filósofo, que este considera que mesmo aquele que crê estar sem Deus e abomina Deus, mas que invoca todo o seu ser, o TU de sua vida, que não pode ser limitada por um outro ser, esse se encontra na presença da relação Tu eterno. Enfim, a relação EU-TU com Deus pode se dar através da relação com outras pessoas, com a natureza, com as artes, com o mundo, enfim, toda relação que potencializa um espírito, e não delimita-o em “verdades acabadas”.

Este livro foi considerado uma importante obra no século em que foi concebido, o então séc. XX. É de suma importância lembrar que Buber era judeu e o mundo havia passado por uma catástrofe envolvendo sua orientação espiritual duas décadas depois da publicação de seu livro, o que provavelmente lhe possibilitou elucubrações que eram condizentes ao seu tempo. No entanto, sua obra apresenta conteúdos que seriam mais bem desenvolvidos posteriormente, como por exemplo, o conceito de “intersubjetividade”, de relação pra além da linguagem, entre outros aspectos. Seria, talvez, importante colocar uma questão que não ficou esclarecida ou que pelo menos, menos não soou enfatizada. Quando a relação EU-TU se dá no EU-ISSO há um recuo nas partes envolvidas que usurpam a sua possibilidade. A obra se configura em um apelo para que sigamos a atitude EU-TU em relação aos demais. Porém, como o próprio texto admite, estamos inseridos num âmbito de relações tal que esta possibilidade está cada vez mais escassa. Em um outro nível de abstração podemos nos questionar se é - ou como é - possível estar EU-TU quando o meio lhe impele para o EU-ISSO. De qualquer forma, o filósofo nos traz especulações que permeiam e tratam o processo prático que se dá no cotidiano, mais precisamente, a todos os instantes de nossas vidas. Dada esta realidade, seríamos mais coerentes quem sabe, se vivenciássemos este questionamento, do que perdurarmos nas próprias conceituações, pois, de acordo com o que é colocado, já estaríamos no âmbito do deliberável, pertencente à relação EU-ISSO, ou seja, em profunda contradição com a proposta da obra filosófica.