1984 (George Orwell)

Lançado há exatos 60 anos, o livro “1984” é uma obra de ficção salutar que pode ser entendida como uma grande divagação eufemística sobre o comunismo stalinista. Os Planos Trienais descritos no livro são uma alegoria sucinta dos “Planos Qüinqüenais” do governo soviético em seus anos de chumbo. Imaginar isso é acertado, mas reduzir-se a apenas isso seria obscurecer a sagacidade de George Orwell, que teve entre tantos outros méritos, o de trazer as grandes discussões político-históricas de seu (nosso) tempo para o mundo onírico do “era uma vez”. Isso, longe de nos afastar da verossimilhança, afoga-nos no assombro do mundo real pelas mãos da viagem literária.

Há neste “1984” um não-sei-o-quê lúdico, extremamente artístico e cultural que nos permite um adentramento "de poltrona" sem, contudo, nos permitir que percamos de vista o norte da bússola do estranhamento do mundo real. A obra orwelliana tatua sobre o indivíduo sóbrio em realidades diversas um nó na garganta, uma clausura existencial e uma dor claustrofóbica, que nos parece que a história (e sua conseqüente “realidade”), perdeu seu sentido, e a nós só será permitido o desbunde (acompanhado de sua irmã, a es-preguiça-deira pensamental), ou o niilismo instransigente. O texto, todavia, intersecciona todos esses desdobramentos sobre leitor de forma tão vívida que, sem perder uma fagulha sequer de sua envergadura, coerção e coesão, nos vemos além do mundo ficcional. Os personagens são críveis, não só pelo julgamento estético que fazemos, mas também pela exata localização física, temporal e espacial em seu meio social e cronológico.

Vamos então ao enredo: é 1984, e o mundo está dividido de maneira muito peculiar: após uma violenta crise do capitalismo, o planeta é composto de 3 grandes superpotências que estão em guerra constante: Oceania, Lestásia e Eurásia. As pessoas no continente oceânico vivem suas vidas perfeitamente administradas pelo Grande Irmão: não pensam, não questionam, não duvidam. Seguem as suas leis estritas, vivem suas vidas regradas, assistem tudo através da teletela e de lá são assistidas pelas hordas governamentais, encarregadas de controlar todos os movimentos (e pensamentos) da sociedade. Novas técnicas de dominação do homem pelo estado foram elaboradas, entre as quais se destaca a Novilíngua, uma nova cartilha oficial com as palavras que definem o entendimento da língua máter.

Winston Smith, funcionário do governo, 39 anos, habita este mundo onde todos são iguais, vestem-se da mesma maneira, comem a mesma comida. Dentro da redoma que Londres se tornara, ele apresenta, contudo, um diferencial que o põe em risco constante: Smith pensa (!?). E ele sabe que sua história está sendo recontada diariamente, com mudanças substanciais feitas pelo aparato governamental, para que ninguém tenha um ontem (ou, especificando melhor, “uma história”). Todas as verdades são reconstituídas cotidianamente e ninguém se dá conta de que essa reescritura de suas vidas é uma instituição que plastifica o homem. Todos são felizes porque é assim que o Grande Irmão quer que seja, e pronto. Não importa que a Polícia do Pensamento controle até aquilo que sequer se pensou. Para esta sociedade também não é problema filhos delatarem os pais, pois é essa a norma real de como a nação é gerida.

Smith, entretanto, acredita que alguma coisa está errada, e que é preciso fazer algo. Para tanto, ele escreve um diário onde anota pormenores de sua vida. Escondido da teletela, que tudo e a todos controla, nos recantos de sua casa ele tenta dar vez à imaginação, à nostalgia, ao sonho de um amanhã diferente. E sua vida ganha novos contornos ainda mais perigosos quando percebe que uma conhecida de trabalho está seguindo-o. As trocas de olhares criam um pânico sobre ele. Será ela uma espiã da Liga Juvenil Anti-Sexo? Atormentado em dúvidas, vive dias de angústia feroz, mas quando ela confessa o seu amor, sua vida ganha novas cores e uma dimensão imprevista. Passam então a se comunicar e depois a encontrar-se nos recantos mais distantes da cidade e, escondidos de tudo e todos, descobrem pequenas maneiras de sobreviver em sua utopia juvenil, tentando fazer com que o amor de ambos sobreviva às implicâncias legais. Afinal, amar também é proibido. O sexo era apenas pró-criativo, praticava-se com o intuito exclusivo de dar prosseguimento às gerações. E neste contexto ambos lutarão pela persistência de suas (novas) vidas, agora modificadas pela paixão e pelo sonho.

Mas para fazer triunfar esse amor eles precisarão correr riscos, colocar suas vidas (e sentimentos) à prova, compartilhar com terceiros as amabilidades cotidianas, introjetar no cotidiano alguns elementos romanescos e policialescos. E é sobre esse paradoxo que o autor se lança, com apontamentos extremamente interessantes para a reflexão de como vive a sociedade hoje, supostamente mais segura sob câmeras que controlam (e guiam) seus passos em cada metro quadrado andado.

Tradução Wilson Velloso, 11ª ed., 1978, Cia. Ed. Nacional, SP

Original “Nineteen Eighty-Four”, 1949