“O Franco Atirador” (The Deer Hunter)

“O Franco Atirador” (The Deer Hunter)

 

 

Cimino narra considerando a sua cultura geral. De bandeja deve-se saber que o Nan Viet teve lugar entre 63-75 e que seu filme foi rodado nos 70 (78). Assim, aquela siderúrgica em que os rapazes trabalham existia nos 60 embora tenha sido captada 10 anos depois. A cara do cinema americano nessa década detinha uma feição peculiar e, mesmo perdida para sempre, é possível entrar em contato com ela. Basta escolher o título certo.

 

Cimino despreza toda e qualquer cartilha, especialmente as oriundas da Ditadura da Comunicação, que dizem que os tamanhos dos capítulos de um livro devem ser iguais em extensão (!?) e que protagonistas falam A, segundo elenco fala B, planos xis devem ser seguidos por planos y e assim o fator pasteurizado açambarca tudo, para declínio do gênio e corrupção do gosto.

 

Cimino filma o preto e branco da vida com muita cor e jeitão de cine europeu nos primeiros 70 minutos. Estão inclusos aí a cidade de Clairton, (Pensilvânia) e o Parque Nacional das Cascatas do Norte. Nesta seção do espetáculo a mente do cinéfilo trabalha sobre o conceito de que o dia era mesmo composto de 3x8horas= 8 para descanso, 8 para lazer, 8 para trabalho. Os rapazes Robert de Niro, John Cazale, John Savage, Christopher Walken e outros, portanto, se embebedam, jogam sinuca, vão a um casamento e depois sobem à serra em busca de cervos. Comenta-se que a obra foi “ligeiramente” inspirada no livro “Three Comrades” (1937), do veterano da Primeira Guerra Mundial Erich Maria Remarque. Ocorre que o roteiro de Deric Washburn trata os rapazes com o lustro que lhes concerne, ou seja, nenhum. A rapaziada é chão de fábrica, conhecem marcas de cerveja e times locais, a coisa mais inspiradora que se ouvirá deles nesse ínterim será a indagação: será possível beber cerveja e urinar, ao mesmo tempo? A grande inspiração desses 70 minutos repousa no tratamento que o diretor dá a cada circunstância, sem mencionar as circunstâncias dentro das circunstâncias.

 

Meryl Streep tem um namorico com Christopher Walken. Walken, De Niro e Savage irão para o Viet (Nan) dentro de 72 horas. A cenas do casamento enchem os olhos dos saudosos pelo realismo, pela não imposição de um protagonista ou de uma manipulação chula numa festa de classe operária onde todos viram o caneco, se abraçam, se bolinam, se beijam, a banda responsável, depois de horas castigando modas russas se atreve, também sem lustro, na saudosa Can't Take My Eyes off You, canção que horas antes, na sinuca, a galera ouvira a gravação original.

 

De Niro tira Meryl para dançar, e onde se supõe uma má intenção (tempos outros) o que se verifica é o pileque, ele dança com outro padrinho, Meryl com outra madrinha, a vida está longe de ser moleza para os metalúrgicos russo-americanos de Clairton, há que se entornar uma quentinha, senão, como já disse o artífice Buarque, ninguém segura esse rojão. Findo o casório eles se bandeiam para os cervos, a cena da rapaziada largada sobre o Impala branco de De Niro e suas questões triviais remetem, especialmente aos que dobraram o cabo (esperemos que seja o da Boa Esperança), que um dia o cinema já foi assim.

 

“The Deer...” faturou o Oscar 1979 nas categorias de melhor filme, melhor diretor, melhor ator coadjuvante (Christopher Walken), melhor som e melhor edição.

 

Se hoje você se der ao trabalho de baixar ou de buscar na locadoras remanescentes o presente título, fique sabendo que quem toca o finíssimo violão na abertura e nos meados chama-se John Williams.

 

Corta.

 

Michael Cimino nasceu em fevereiro de 1939 em Nova Iorque, Nova Iorque. Aos vacinados pelas películas “Apocalypse Now”, “Platoon”, “Nascido para matar”, etc., saibam, “The Deer...” inaugurou a safra e não gasta mais do que 30 minutos para mostrar o eterno lado B do ser humano. Capítulo curto e vale considerar que o filme dura 180 minutos.

 

De Niro volta pra casa e você pensa o que? Que existia web e vídeo game em 1970? Datas e locais não são assinalados no filme. Supõe-se que a partida deles para o Sudeste Asiático tenha ocorrido em 67/68,

Can't Take My Eyes foi lançada em 67, não há pontuação sobre o homem na lua (69), assim...Ademais, o filho de Savage, quando do retorno do herói, é uma criança de no máximo três anos de idade.

 

A arte, quando se propõe mensurar com seriedade o tamanho da existência humana, raramente deixa barato. “The Deer...” lida com esse parâmetro. Pode computar também, pelo comportamento do trabalho como um todo, que uma estatueta do Oscar em 79 valia mais do que hoje. E no jogo das dimensões, face a eternidade a duração de um planeta talvez chegue em algum dígito ao passo que a existência humana não passa de um piscar de olhos.

 

Walken diz para o amigo, antes de embarcar, “tudo está passando muito rápido”. Ele representa mais um entre os milhares e milhares, jovens, completamente incapazes de processar qualquer informação valiosa do cotidiano para, de forma abruta, serem lançados em pleno terror e a partir daí a máquina simplesmente pifa.

 

Walken endoidou no sudeste e não conseguiu voltar. Ficou em Saigon e arredores fazendo a única coisa registrada em seu ser nos campos de batalha – jogar roleta russa chapado de heroína. Não que ele precisasse da heroína. Em termos existenciais é uma breve vida jogada no lixo e nesse ponto você está livre para estabelecer as correlações que quiser envolvendo entorpecentes-armas-insanidade na nossa vã atualidade. Em termos dramáticos foi um merecido Oscar.

 

“Basta uma única bala para matar um cervo”, filosofa o herói para o amigo antes do embarque, o tipo de parábola válida em botecos e casas lotéricas, contudo, essa filosofia mostrar-se-á diversa no pós guerra.

 

“O Franco Atirador” é um filme saudável sobre um mundo doente. (Existem filmes doentes). A fotografia de Vilmos Zsigmond fala por si e a guerra na visão do diretor equivale ao chute no pau da barraca e chama a atenção a isenção do glamour roliudiano sobre os soldados, dado visível em produções posteriores. Os soldados de Cimino estão descalços, famélicos, com 15 parafusos a menos, para início de conversa.

 

Os amigos acham De Niro um tipo diferente, antes e depois do Viet, e é bastante interessante verificar por onde caminha o julgamento deles. O que nenhum deles computava, até então, era que o personagem retinha a principal característica do célebre Josey Wales de Eastwood – sempre volta para ajudar um amigo.

 

 

 

 

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 09/02/2011
Reeditado em 27/02/2022
Código do texto: T2781744
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