“Nascido em 4 de julho” (Born on the Fourth of July)

“Nascido em 4 de julho” (Born on the Fourth of July)

Quando o tubarão de Recife arrancou o braço de um surfista, em meados dos 90, as câmeras reportaram sua entrada no PS. Comovidas, perguntaram: puxa, você perdeu um braço, que pena, hein?

- Que pena, nada! – respondeu o surfista – Estou vivo, isso sim!

Ron Kovic (Tom Cruise) não voltou da Ásia com essa mentalidade, e se voltou, ela foi obscurecida pelo purgatório do Bronx, num hospital de veteranos.

Ron é um personagem real que se alistou movido pelo imaginário (guerra é uma coisa bacana) e foi lutar no futuro berçário de filmes chamado Vietnã, um local com dores reais que os gringos passariam a filmar colocando umas guitarras no fundo e uns helicópteros na frente.

A vida foi madrasta com Ron Kovic (?) – trata-se de uma semi pergunta.

Thomas Cruise Mapother IV nasceu em Syracuse, em 3 de julho de 1962. Indicado três vezes para o Oscar, (levou 3 Globos de Ouro), se em algum momento o Oscar teria beirado justiça aos seus dotes dramáticos, esse momento seria o da sua estada no hospital do Bronx. Oliver Stone não facilitou nadinha para o público: comadres sujas, enfermeiros (as) de décima quinta categoria, médicos indiferentes, o troféu de quem voltava aleijado da Ásia era mais aleijamento.

Voltando à semi resposta, Ron não viajou 20.000 quilômetros para levar alegria e esperança aos irmãos que por lá semeavam e colhiam arroz.

Stone escreveu o roteiro junto com o próprio veterano, baseado em obra de sua autoria, para o jovem Cruise estrelar seu décimo terceiro filme. Na época, ele estava prestes a ingressar no seleto clube dos artistas mais bem pagos do cinema californiano. Três anos depois Cruise cobraria 12 milhões por seu papel em “Questão de Honra” e a seguir 15 milhões (leia-se dólares) para atuar no “Interview with the Vampire”.

Tendo em mente que, mesmo com 21 anos no lombo, e isso em linguagem de cinema, sobretudo na era da informação expressa, é coisa pra chuchu, trata-se de um filme com a insofismável assinatura de Oliver Stone. O diretor abre a película com o pequeno Ron, nos ombros do pai, assistindo o desfile dos veteranos da Segunda Guerra. Ele repara nos homens envelhecidos e mutilados. O enquadramento indica que algo nele deve ter dito: isso é o seu futuro.

A típica cidade americana, os adereços dos conquistadores do planeta na forma do simpático bombeiro, bandeirolas, fanfarras, conversíveis com moças de pernas de fora, famílias perfeitas com ideais perfeitos.

Ron voltou da Ásia numa cadeira de rodas e 1.700 dólares de pensão governamental.

A atriz Caroline Kava, num pequeno papel perfeito, faz a mãe de Kovic, a guardiã da vitória, das revistas playboy proibidas na casa, das aspirações com fuzis e doravante deve lidar com o filho bêbado, piedoso e tetraplégico.

Ron acreditou nos maniqueísmos de consumo moral que lhe venderam antes do baile de formatura. Os US Mariners se consideram superiores aos seus pares de exército/marinha/aeronáutica. Até nisso ele acreditou.

“Nascido...” é a história do caído, uma gota no oceano de sucessos caídos que foi levantada pela verve de um cineasta com C maiúsculo, que ali depositou suas energias, quiçá no afã de sinalizar para gerações futuras que muita gente com medalha no peito pode dar pela falta de alguns pedaços de seus corpos. Na melhor das hipóteses.

Na América de 68, quando boa parte do público começou a ver com péssimos olhos a participação do país nesse conflito, os que de lá chegavam eram encarados como párias e fracassados.

Ron volta pra casa para sair dali como um foguete e partir para o México, onde as dores são engarrafadas, as cadeiras de rodas proliferam, as moças falam uma linguagem alfa-numérica e, para coroar, ir de encontro ao alucinado Willem Dafoe. Há a briga dos cadeirantes em pleno deserto e a disputa pela consciência mais pesada.

Costuma-se dizer que a enxurrada de informações hoje é tamanha que uma criança de 6 anos, devorando duas horas de TV por dia, numa semana acumula mais informação do que um sábio da Idade Média. Não estamos falando de qualidade.

Ron foi para o México, pois não havia meio de se livrar da montanha de impressões que seu ser reuniu nos últimos tempos. Aconteceu com ele o que acontece com todo mundo sob pressão ininterrupta.

Já que não dá para processar os dados, pode-se ao menos fugir deles através do atordoamento.

Thomas Cruise Mapother IV, antes de Hollywood, passou 14 meses meditando num Mosteiro Franciscano. Sua intenção era ser frei.

Ron voltou renovado da meditação mexicana.

A aceitação da sua condição, inda que confeitada de herói de guerra, lhe deu o combustível necessário para ficar firme na cadeira e falar por todos os renegados. Alguém tinha de pronunciar, para o mesmo país que os enviara para a guerra, sobre os direitos e deveres dos alvejados.

Oxalá chegue o dia em que pronunciamentos irão versar sobre notações musicais, páginas de brochuras, safras de tangerinas. Guerra será apenas uma informação em livros tão velhos quanto a Idade Média.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 29/07/2010
Reeditado em 11/10/2012
Código do texto: T2406660
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