“As Pontes de Madison” (The Bridges of Madison County)

“As Pontes de Madison” (The Bridges of Madison County)

Acerca de certas situações da vida, fadadas ao inesquecível, cronometradas desde a entrada até a saída e

deixando no encerramento físico lágrimas doídas, partitivas, que se conservam por tremendos períodos ditos temporais. Muitos os eleitos, poucos os escolhidos. Esses encontros, essa abertura de uma nova dimensão na existência, essa possibilidade de se ver como uma cópia melhorada de si mesmo ao lado de outro (a), já são combinados durante o sono, durante pré vidas, durante hiatos. Milagre é quando a intuição fala mais alto e a casca se rompe, permitindo viver o que fora acordado noutra esfera.

Clinton Eastwood dirige e atua. Ele é o fotógrafo da National Geographic que vai pedir uma informação para a dona de casa Meryl Streep. Não há sinalização. Ele chega de repente mas ela não o vê como uma ameaça. Já estava combinado...Ela usa os símbolos locais, a fazenda tal, o cachorro de tal cor, a bifurcação, ela descreve a paisagem como faziam os pilotos do Coli Posteaux, quando sobrevoavam a América do Sul e tinham de esclarecer a rota para novos pilotos. Então diziam: tantas milhas ao sul de Bogotá, você verá uma senhora conduzindo cabras e a leste um riacho...Ela explica para ele que na fazenda tal há um cachorro amarelo, belicoso, então se dá conta que seria mais fácil acompanhá-lo até o local.

Eastwood se baseou no livro de Robert James Waller, mas, se não estava no livro ele colocou, porque muita gente pega uma câmera e pensa que faz cinema, poucos semeiam imagens. A cena do cachorro perseguindo a caminhonete, algo banal para milhares de brasileiros, e não só brasileiros, algo que não se vê mais, a ação se passa em 1965 na América rural, o filme foi rodado em 1995 na América liberal de Clinton, e outros ventos passavam por nós.

Meryl como a italiana Francesca, já residente no Novo Mundo com marido e filhos, sorri, enrubesce, se atrapalha com as mãos e faz perguntas afiadas.

O fotógrafo cosmopolita lhe oferece cigarros exatamente do jeito que se oferecem empadinhas de queijo e exatamente do jeito em que se hesita, seriam empadinhas confiáveis (?), ela aceita. No rádio da caminhonete ele procura uma estação de blues e comenta sobre o cheiro maravilhoso que impregna a paisagem. Ela diz que não sente. Talvez tenha se acostumado. O que ela não entende é como ele pode ter simplesmente descido de um trem para conhecer uma cidade, apenas porque esta lhe pareceu atraente. Tratava-se de Bari, sua cidade natal na Itália. Começava aí um novo mundo para ela. Ela insiste: você realmente desceu do trem por causa disso?

Robert James Waller nasceu em 1939 e além de escritor (12 livros entre ficção e não ficção), é músico e fotógrafo. O bem torneado dos diálogos com certeza nasceu da sua sensibilidade, e no mundo da arte as freqüências se aproximam com extraordinário refinamento. Eastwood inseminou novo traquejo na obra de Waller, e no mundo literário esse autor, a pedidos de milhares de fãs, lançou em 2002 “A Thousand Country Roads: An Epilogue to The Bridges of Madison County”. Os fãs estavam certos, “As Pontes de Madison” pode entrar de cabeça erguida no panteão das histórias de amor e ali um cultivar um jardim.

Annie Corley e Victor Slezak, o casal de filhos da finada Francesca, vão descobrir entre os seus despojos algumas encadernações, narrando que durante 4 dias, no verão de 1965, quando eles foram com o pai levar um novilho para concorrer noutro estado, o destino bateu à porta de sua mãe. Por conseguinte eles vão viver estágios distintos durante a leitura: raiva, negação e por fim aceitação.

Clint assina a trilha, juntamente com Lennie Niehaus. Nada destoa nas “Pontes..”, cinema é como literatura, o que se vê não é produto exclusivo de tecnologia, seja ela qual for, o que se vê é o estofo do regente, ponto.

Recordista de indicações ao Oscar (15), Meryl Streep se viu diante de um cavalheiro nesse primeiro dia de idas às pontes, mas ela só vai descobrir a graduação dele no fim da vida. No entanto, no segundo dia ela o convida para jantar.

Afinal, quem é a Francesca Johnson vivida por Meryl? Uma nascida na bota do Mediterrâneo e adaptada nos milharais do Iowa, com nenhuma inclinação para a luxúria e firme no batente de dirigir trator, pegar na enxada e criar um casal de filhos. Tão logo a família parte para o concurso ela suspira aliviada. Não é necessário uma mente muito aberta para compreender que o caminho de uma dona de casa nesses idos beirava a servidão, mesmo sendo uma vocação.

Durante o jantar, o fotógrafo lhe pergunta como é seu marido. Meryl retruca: ele cheira bem. Seus mundos vão se unindo antes pela palavra – esta grande impressora de duradouros resquícios, Francesca ficará surpresa consigo mesma, com suas próprias frases e trocadilhos, dada altura ela o cutuca dizendo que mora no meio do nada e ele explica: no meio do nada não, isto é seu lar. Quando a cruz pesa e o nosso sistema de crenças entra em pane, precisamos dos olhos dos outros, são os olhos dos outros que nos situam na Grande Situação.

O olhar de Jack N. Green, responsável pela fotografia do filme, está à altura do aprumo dos mestres que o circundam. Com 41 filmes no costado, Jack estava há anos batendo bola com Eastwood, levou o Oscar de Fotografia nos “Imperdoáveis” e tem uma penca de indicações além da própria academia.

Quem é Robert Kincaid, vivido por Clint Eastwood? Um cavalheiro. Depois que eles transmutam a palavra em carne, por alguns minutos Meryl o transforma num marinheiro com uma mulher em cada porto. Ele diz que, curiosamente, toda a sua trajetória de vida estava fadada a esse encontro. O argumento a desarma. Suas ações antes e depois disso já corroboravam seu sentimento. Os cuidados que ele tem para que o fantasma da fofoca fique longe da vida dela. Sua aparição afastada, transida pela dor da separação, estoicamente contida, ela está com o marido, chove, ainda não sabe que ele deixará um testamento em seu favor e um livro em sua homenagem. Marinheiros não fazem isso. E além do mais, Meryl estava á altura. Ela era a outra parte.

Seria uma asnice rotular “As Pontes...” como uma história de adultério. Os filhos de Francesca, a princípio, não compartilham dessa opinião. Pouco a pouco a leitura do diário serve para dissolver os conceitos preconcebidos, sobretudo se a causa da crítica acontece no próprio quintal. Francesca não só amara como lavrara em cartório a proporção do amor. Seu marido não despertou nela nem um centésimo da fagulha que incendiou seu coração por Kincaid. Essa é uma história de amor envolvendo adultos com idades emocionais compatíveis. Meryl sabe que o marido também seria devastado pelos comentários e atina, talvez inconscientemente, que viver os sonhos significa matá-los.

O experiente Jack Green mostra com primazia a cozinha dos Johnson nas luzes sugeridas da manhã, tarde e noite. A cena de amor dos dois é um jogo de sombras com pouquíssima luz e parece o retrato fiel do que possa ter sido a consumação dessa breve união. Restam as pontes cobertas, marcos históricos da colonização dos EUA, um marco meio paradoxal já que a mais antiga data de 1870, serviam para proteger os usuários das intempéries. Eternizaram-se pela arte e não pelo seu aspecto pitoresco.

Enfim, a paisagem das pontes e das cercanias exprimem para as gerações futuras que cinema é parte paisagem. E quando bate uma brisa, galhos e folhas se movem.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 31/12/2009
Reeditado em 20/01/2013
Código do texto: T2005042
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