Jesus num mundo-cão! (Dogville)
Há muito tempo que queria escrever sobre Dogville (Dinamarca / Suécia / França /Noruega / Holanda / Finlândia / Alemanha / Itália / Japão / Estados Unidos / Inglaterra. 2003, ufa!), filme que mesmo antes de ter visto me causou profundas estranhezas (boas estranhezas, devo dizer.): o filme não tem cenário! Ouvia as pessoas falarem e me perguntava: como assim? Então, aproveitei o feriado (ou dias santos, como queiram) pra conferir como isso funcionava.
Bom, o cenário não tem mesmo e achei isso sensacional! A história se passa durante a Grande Recessão Americana na década de 1930 e gira em torno de Grace (Nicole Kidman), uma jovem que, fugindo de perigosos gangsteres, acaba encontrando refúgio em Dogville, cidadezinha que a acolhe em troca de pequenos serviços que vão, pouco a pouco, lhe custando muito caro. Com o desenrolar da trama, Lars von Trier (diretor) nos apresenta uma percepção pessimista da humanidade, onde impera o cinismo, a hipocrisia, a chantagem, a vingança, a mentira, e uma visão dogmática que, além de negar qualquer outra alternativa, simplifica e naturaliza a maldade. Porém, é muito mais que isso. Realmente muitas metáforas. Tantas que nem teria espaço na coluna.
Por conta disso, eu ia até desisti de comentar, mas com todo o clima de semana santa, pude perceber algo que me instigou e fez achar que valia a pena escrever: Dogville guarda muita semelhança com história de Jesus Cristo.
Isso me veio à mente depois de assistir um daqueles filmes que passam por essa época do ano nas “sessões da tarde” de algumas emissoras de tv. Eu adoro assistir esses filmes sobre Jesus... Há umas versões realmente interessantíssimas dos evangelhos! É incrível como as mais recentes parecem que vão humanizando a figura de Jesus: se antes ele era mostrado como o todo poderoso, filho de Deus, o dono da verdade (aliás, ele é a verdade!), mais recentemente, parece que os conflitos típicos dos seres humanos são retratados mais pungentemente no personagem Jesus que, por vezes, parece (como qualquer um de nós) meio que sem saber o que ta rolando, sem ter explicação pra si próprio a respeito das coisas (milagres?) que faz e coisa e tal. Gosto disso.
Gosto muito do diabo também (!). Explico: sempre me chama atenção o personagem do lúcifer nesses filmes... O demo é um tipo (Deus me perdoe, mas não posso negar...) fascinante. Ele também mudou de um tempo pra cá: antes, era o mal em pessoa, mal por pura maldade mesmo, sabe? Direto ao ponto tipo carcará. Já atualmente, ele parece ser bem mais sutil e mais persuasivo, utiliza-se da razão humana (quase sagrada na modernidade) para atingir seus objetivos. Com esquemas lógicos quase que infalíveis, não é ele que nos leva ao mal, mas nós é que vamos e com gosto! Isso pode ser visto em outros filmes como, por exemplo, O Advogado do Diabo. O que dizer daquele diabo interpretado por Al Pacino? Que elegância! Simplesmente fantástico!
Mas voltando a comparação que ai fazendo antes dessa divagação toda entre Dogville e a história de Cristo, são muitos os paralelos. A começar pelo nome da personagem principal em Dogville, Grace... no mínimo sugestivo não?
Também nota-se que, em ambas as histórias, os protagonistas são mostrados como um presente, uma benção, dada às pessoas ainda que isso seja apenas delicadamente proposto em Dogville. Em ambas as historias as pessoas (nós?) não fazem muito por merecer a tal benção e, por sua maldade intrínseca, inerente à própria natureza (coitadinhos, não têm culpa... ou melhor: “eles não sabem o que fazem”. Será?), conseguem maltratar, destruir, vilipendiar toda e qualquer personificação ou materialização de algo bom (Jesus ou Grace) e isso não sem justificativas bastantes racionais; razão é o que não falta às pessoas de Dogville e de Jerusalém (e olha aí o mais novo instrumento do nosso amigo lúcifer outra vez... algo como a “voz do povo é a voz de Deus”... Pois é. E “demo”, que significa “povo”, não é o mesmo radical das palavras democracia e demônio?... Eram sábios esses gregos, não?). “Eles preferiram Barrabás, um assassino, a você” disse Pilatos a Jesus; “O povo dessa cidade apodreceu por dentro”, diz um dos personagens de Dogville e, em ambos os casos, a racionalidade não ameniza nada. Como é que de algo tão humano brotam atos de tamanha desumanidade como os infringidos a Grace e Jesus?
No filme, a vilania humana é divinamente (desculpem o trocadilho) representada pelos personagens através de famosos pecados como: a vaidade (Chloe Sevigny), o orgulho (Ben Gazarra), a ira (Patrícia Clarkson), a luxúria (Jean-Marc Barr), a avareza (Lauren Bacall) e a inveja (Stellan Skarsgard).
Ah! Como é que ia esquecer disso? Tanto Grace, quanto Jesus têm pais muito poderosos! Mas isso em Dogville, por conta mesmo da trama, só é revelado no final do filme (será que estraguei o filme? Espero que não.). É no final do filme também que Grace mostra-se definitivamente como uma defensora do Bem. Muito acima de nossa vã filosofia, seu reino, a exemplo daquele do messias, não é desse mundo-cão (ou pelo menos do mundinho de Dogville) e é a ela que o povo de Dogville, vai ter que prestar contas num juízo final...
Ok, Grace é um cristo!? Olha, numa acepção da palavra, sim. Ela é esculachada como um (ou como O) pela cidade que se torna claustrofóbica, kafkiana (Dogville se torna universal: um inferno onde nós somos nosso próprio diabo!).
Mas o que chama atenção nesse cristo vestido de mulher é que, diferentemente do outro, ele decide que pra que o bem prevaleça é preciso extirpar o mal de forma radical. O perdão não é a saída e por mais que Grace lute por ele, ele simplesmente não funcionará. Um cristo bem ao estilo do Antigo testamento, eu diria (olho por olho...), ou ainda, como disse linhas atrás, um cristo do juízo final mesmo.
Grace se vê com o destino das pessoas (e o seu próprio) nas mãos e é aquela história: pra fazer uma omelete é preciso quebrar ovos... mas se não existirem ovos bons, se todos forem podres é melhor procurar outra coisa pra comer... Quanto aos ovos? Bem, eu não guardo coisa podre na geladeira, você guarda?
Enfim, há milhares de outras leituras pra Dogville e essa é só uma. Então, assista e viaje na maionese à vontade.
(publicado no Portal Cultura de Comunicação disponível em : http://www.portalcultura.com.br/clube/cinema/colunistas.php?id=65)