"Campo dos sonhos" (Field of dreams)

"Campo dos sonhos" (Field of dreams)

Quando John Lenon compôs “Imagine”, deve ter passado pela cabeça dele o aliviante auto indulto ao escrever: “ você pode dizer que eu sou um sonhador, mas sei que não sou o único”.

Melhor coisa que existe, sair da embalagem e perceber-se como parte de um todo. Principalmente se for o todo dos sonhadores, casta que prima pela perseguição alheia, até a hora de encontrar-se com os seus.

Tenho um amigo diabético que diz: “Quando morrer, vou para o Grande Açucareiro”. Ele é feliz, já sabe que não é o único.

Também não foi uma única pessoa que me disse: Campo dos Sonhos? Perdi a conta de quantas vezes assisti...

“If you build, he will come” ( Se você construir, ele virá).

A frase é o mote do filme. Quem escreveu a frase foi William Patrick Kinsella. Autor canadense e professor de literatura, um de seus contos virou curta e levou Oscar. Ele nem sabia. Estava assistindo TV quando viu os créditos com o nome dele. Kinsella, em entrevista, disse ser uma dessas pessoas que, com 5 anos de idade, acordam e se dão conta que já sabem ler e escrever.

"Campo dos sonhos” não ganhou estatueta. Mas o mote ganhou adeptos.

Por aqui, na época, pegou um pouco, o que eu não sabia é que nos EUA pegou pra valer. Em 2007, numa palestra sobre fontes alternativas de energia, a vice cônsul dos EUA em São Paulo usou essas palavras, e disse que na América foi febre. Outro exemplo: o prefeito Donald Whiteaker, da cidade Lusk, Wyoming, usou esse argumento para justificar os investimentos em fibra ótica que a prefeitura fez, na recém nascida Web-para-todos de 1996.

“Se você construir, ele virá”. Kevin Costner ouve isso quando está no milharal.

Amy Madigan veste o traje da esposa perfeita para um marido que ouve vozes. (Queria duas dessa).

Ray Kinsella é na verdade o protagonista duas versões, uma no livro, (onde ele tem um irmão gêmeo), outra no filme, (vivido pelo Kevin), e andando na corda bamba da homenagem, que tanto alveja o pai dele quanto um fato relevante ocorrido em 1919, sobre um time de jogadores de baseball.

Se você paga as suas contas com a receita obtida da venda de grãos de milho, e, se em dado instante, uma voz começa a lhe dizer: “If you build, he will come”, daí a voz te mostra que o que você tem de construir é um campo de baseball, no meio do seu milharal, e como duas coisas não convivem ao mesmo tempo no mesmo espaço, e a voz não lhe dá trégua, mas o seu sustento vem do milho, que fatalmente será reduzido, só mesmo uma parceira como a Amy, que em dada cena pergunta: você não acha que isso é uma volta do ácido?, e se não for isso, ótimo, vamuqvamu, porque se um louco ouve vozes, O Grande Sonho é o que o louco ao lado diga: numa boa, vamos jogar o milho fora e chamar os fantasmas para jogar.

Não foi um fato que ocorreu do dia para a noite. Kevin construiu o campo, torraram toda a poupança deles em holofotes e artigos para baseball, com uma filha para criar, sucedem-se as estações, ele com cara de tacho na janela, olhando a neve no ex-milharal, sua taça de consolo é o escárnio geral, até a noite em que a filha lhe diz: pai, tem um sujeito lá fora. Era um fantasma.

Grosso modo, apenas para ilustrar, o fantasma, na versão brasileira, seria o Garrincha. No caso deles, Shoeless Joe, interpretado pelo Ray Liotta, numa atuação de poucas palavras e olhar firme, que desconvida o interlocutor a maiores indagações.

Como o próprio filme, que brinca com dimensões de tempo e espaço sem apertar botões ou fazer uso de qualquer justificativa para com o espectador. A não ser a voz, que de tempos em tempos surge com mais um mistério. “Alivie a dor dele”. Ele quem(?) indaga o Kevin, ou, "vá mais fundo”, para onde(?), espanta-se o Kevin.

"Campo dos sonhos” deu o merecido salto quântico na carreira do Costner, já havia se destacado no “Sem saída”, mas uma grande carreira não se solidifica com um só destaque. Nem um campo de baseball pode ter um só jogador. Veteranos desencarnados aparecem para se divertir, poucos conseguem vê-los, as homenagens saem do personalismo e tratam do amor pelo esporte: “o cheiro do gramado”, “jogaria até por um prato de comida”, valores de um mundo mitológico. Burt Lancaster aparece como o médico que um dia teve o sonho de ser um jogador, mas não foi, e esclarece sem ressentimentos: “filho, minha vida teria sido um erro se, por um dia que fosse, eu não tivesse sido médico”. Mais para frente ele vai dar o exemplo na prática, de que a Trilha Menos Percorrida está deveras entrelaçada pelo que é fácil de falar, mas difícil de fazer: renúncia.

Sempre me perguntei como seria uma adaptação desta obra, em relação aos ícones do nosso futebol, do início do século XX. Só conheço uma pessoa apta para responder: Laércio. Basta conferir suas crônicas. Não só pelo que ele sabe, mas pela maneira carinhosa como descreve seus ídolos. W.P. Kinsela, em “Shoeless Joe”, usa do mesmo refinamento para descrever ídolos que na verdade foram do pai dele, e dá-lhes de presente um gramado novinho.

James Earl Jones, personifica o surreal Terence Mann , célebre e não menos solitário autor, que teria inventado o “Faça Amor, Não Faça Guerra”. Ele vai viajar no espaço e no tempo com o Kevin, e quando finalmente conhece o campo de baseball, todo o seu amargo cinismo oriundo dos 60 desaparece, pois naquele momento está renovado pelo transe de ver coisas que nem todo mundo vê. É o transe dos que se esvaziam e passam a ver.

Adaptação e direção de Phill Alden Robinson,( “A Soma de Todos os Medos” , “Quebra de Sigilo” ).

“Campo dos sonhos” teve 3 indicações. Parece que a falsa mentira de que a academia gosta de premiar produções grandiosas ensinou pelo exemplo. Afinal, a grande produção do filme, em termos materiais, é um gramado com holofotes, numa fazenda de Dyersville, no Iowa. Tão logo a filmagem terminou, (1989), os donos, talvez contaminados pela idéia de que sonhar vale a pena, mantiveram-no intacto e o disponibilizaram para visitação pública, e usufruto. Ou seja, pode levar seus amigos para uma partida, com tacos e tudo, desencarnados ou não.

De qualquer forma, não é o Oscar que vai me levar a assistir um filme vezes sem conta. Pessoalmente, o que conta são as vozes que o filme manda pra mim, e as que ficam comigo. Principalmente quando mostram, em última análise, que eu não sou o único.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 14/01/2009
Reeditado em 16/10/2021
Código do texto: T1384623
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.