Esboço de um espelho refletido: Lacan e a transferência freudiana

A partir do caso Dora, Lacan apresenta o desenvolvimento da psicanálise como uma experiência dialética orientada às escansões da verdade do sujeito, onde a transferência torna-se palco propício para que as dramatizações e, por consequência, suas incongruências venham à superfície. Através delas, o psicanalista pode retificar enunciados a fim de que o sujeito ressignifique suas próprias posições frente aos seus objetos. Ao compreender a psicanálise como experiência dialética, Lacan insiste que essa noção deve prevalecer no tocante à questão da natureza da transferência. Isto implica que seria errôneo reduzi-la à mera objetivação de propriedades características do sujeito, já que, “o sujeito propriamente dito constitui-se por um discurso em que a simples presença do psicanalista, introduz, antes de qualquer intervenção, a dimensão do diálogo.” (LACAN, 1951, p.216). Dessa forma, os padrões emergentes desta dimensão dialógica trazidos à luz pela transferência configuram-se em reflexos circunstanciais da subjetividade do sujeito em análise e não em características fixas que lhe são inerentes. A medida que o psicanalista abstém-se de atender às demandas trazidas pelo analisando e interfere fazendo retificações ao conteúdo exposto, novos desenvolvimentos da verdade podem surgir e aí reside o papel do psicanalista como componente ativo e influenciador no processo transferencial, que por sua vez, tem papel essencial no desenvolvimento da experiência psicanalítica.

Lacan entende que é possível recuperar o sentido autêntico da iniciativa psicanalítica freudiana ao entender o posicionamento do psicanalista frente à transferência, ferramenta esta que explicita o modus operandi através do qual o sujeito constitui seus objetos (modo de relaciona-se com o outro). Com efeito, esse posicionamento não deve abraçar as demandas do analisando, mas sim, evidenciar o desejo camuflado por essas demandas. É então através de uma releitura do caso Dora sob a forma de uma série inversões dialéticas que Lacan demonstra a transferência como sendo, também, uma operação do analista que a interpreta. Elege o caso Dora para esse empreendimento, como ele próprio sinaliza, justamente por ser este o primeiro no qual Freud reconheceu o papel do analista quanto à questão da transferência e a importância desta última para o desenvolvimento da psicanálise.

É então, a partir do que Lacan denomina primeiro desenvolvimento da verdade, que Dora expressa suas lástimas gravitando seu discurso ao redor da abdicação da responsabilidade e questiona Freud sobre o que ele fará a respeito disso, percebendo a transferência da demanda - da responsabilidade - ele a inverte e a retorna à Dora, perguntado-lhe qual sua possível contribuição na situação exposta. Em inferências posteriores surge, a partir daí, um segundo desenvolvimento da verdade, onde Dora toma o novo sentido proposto pela inversão dialética e, a partir dela, desenvolve novas perspectivas onde dá-se conta de que suas ações foram essenciais para alimentar e manter a situação tal qual desenvolveu-se até então. Posteriormente, surge novo questionamento: que seria o ciúme manifesto por Dora ante à relação de seu pai? Freud faz aqui uma segunda inversão dialética e observa que o ciúme camufla um desejo de Dora pela própria Sra. K., enunciado subjacente à afetividade e deslumbramento presentes no discurso direcionado à amante do pai. A pouca inclinação de Dora à posição de rivalidade em relação a Sra. K. e mais ainda, a lealdade característica dessa relação levam Freud à terceira inversão dialética consubstanciando um terceiro desenvolvimento da verdade, na qual o desejo é concebido como um significante direcionado a outro significado. A Sra. K. não concebe-se como indivíduo, mas como representação da feminilidade inacessível à Dora.

Somente a partir da imagem trazida por uma lembrança infantil de Dora em que aconchega-se ao chupar o próprio polegar e puxar a orelha do irmão, foi possível identificar a matriz geradora da estruturas que posteriormente configurariam o formato das relações de Dora frente aos seus objetos e, o significado para ela do que era homem e mulher, mostra-se associado à imagem original fixada na infância, onde a mulher satisfaz-se num desejo oral intermediado pelo gênero oposto, representado pelo irmão. Essa estrutura de organização ecoa ao longo de seu desenvolvimento psicosssexual e, assim, Dora identifica-se também com o Sr. K. e, posteriormente, com o próprio Freud. Incapaz de admitir conscientemente seu próprio corpo bem como sua sexualidade, desloca seu ímpeto libidinal para a antiga configuração infantil onde acessa a satisfação sexual através de um intermediário representado pela figura masculina. Toma por objeto o desejo do homem por uma mulher invés de aceitar-se a si própria como objeto de desejo do homem, ou seja, Dora deseja a feminilidade representada pela Sra. K na medida em que é incapaz de acessar essa feminilidade em si mesma para entregar-se ao desejo pelo Sr. K..

Lacan assinala, assim como Freud, que teria sido de grande valia ter assimilado rapidamente a existência e o sentido do desejo de Dora pela Sra. K., orientado-a para este fato. Entretanto, sua tardia apreciação, para Freud, ocorre devido à sua própria ação transferencial, quando esta pressupunha a normalidade de uma fascinação edipiana (direcionada à figura masculina) e não sua normatividade dentro do contexto social. Esta pré-formulação impede Freud considerar, de imediato, o vínculo homossexual. À este fato, Lacan aponta que “Em razão de sua contratransferência, Freud volta com excessiva constância ao amor que o Sr. K. inspiraria em Dora (…)” (LACAN, 1951, p.223) e este enfoque tê-lo-ia distanciado da interpretação assertiva quanto às inclinações genuínas da jovem.

Observa-se bem que o fenômeno da transferência não é exclusivo à psicanálise, visto que ocorre paralelamente à dimensão naturalmente relacional e dialógica dos indivíduos. Contudo, apenas no processo psicanalítico, esse fenômeno pode ser desvelado. Lacan infere que a transferência, dita invisível por Freud no progresso terapêutico, pode ser considerada, justamente, correlativa à contratransferência, por sua vez, produto da subjetividade do psicanalista. Quando a dialética analítica está momentaneamente suspensa, a transferência surge para confessar o modus operandi do analisando, ao psicanalista cabe atentar-se à sua natureza enganadora e torná-lo útil para desenterrar o discurso subjacente. A transferência de afetos, inclinações e materiais inconscientes em um processo terapêutico, assim como, na relação entre o indivíduos é uma seta de dois sentidos contrários: uma aponta para o analisando, outra para analista e este último tem a responsabilidade de conscientizar-se de sua presença e das oportunidades que esta proporciona para o progresso terapêutico.

Aqui, poderíamos estender profusas reflexões sobre o quanto de Freud há em seu discurso sobre a transferência, o quanto de Lacan há em sua intervenção sobre transferência freudiana e quanto meu há nestas palavras acerca da intervenção de Lacan sobre a transferência freudiana, afinal, o que Pedro fala de Paulo, diz mais sobre Pedro do que Paulo. Ainda assim, vamos suspender momentaneamente esse pensamento tendente ao infinito para tecer breve pontuação no sentido de finalizar este esboço.

Com visão convicta e coerente, Lacan acrescenta uma nova roupagem à leitura da transferência no caso Dora, ainda que o cerne da questão já tenha sido sublinhado pelo próprio Freud na ocasião, Lacan entende ser pertinente reforçá-lo e atribuir-lhe um carácter explanatório didático. A tarefa é desempenhada com maestria e o autor produz uma releitura do caso utilizando-se da influencia da dialética hegeliana, na qual acredita-se ser possível adquirir uma compreensão do mundo, da realidade e da verdade das coisas através de uma tríade relacional em que uma tese – antítese – síntese desenvolvem-se continuamente, oscilando entre a conservação e o refazimento. Não sendo excludentes, são na verdade complementares e indispensáveis para a evolução do pensamento racional e filosófico. A característica contínua e construcional da tríade dialética pode ainda mitigar quaisquer preocupações com um fechamento ‘mal’ ou ‘bem’ sucedido de um tratamento, tal como Freud suspeita na ocasião do abandono de Dora, isso pois, a partir da própria impressão deixada pela experiência psicanalítica, o analisando após deixar o tratamento, eventual e gradualmente o reelabora, sendo invariavelmente contemplado por suas reminiscências.

É inegável que sua Intervenção sobre a transferência tenha pertinência e traga ainda mais sentido e validade à teoria psicanalítica freudiana, a eloquência e fidelidade à racionalidade do método científico acrescentam profundidade às observações, cumpre portanto, a tarefa de elucidar com objetividade lacunas deixadas, não pelo trabalho de Freud, mas sim talvez, pelo burburinho do clima defensivo implantado ante suas publicações.

Jady Tariane
Enviado por Jady Tariane em 14/10/2017
Reeditado em 14/10/2017
Código do texto: T6142416
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