UM ATO DE CONSCIÊNCIA
O copo de uísque, sem gelo, balançava-se inquieto curvando em voltas sobre a mesa, qual a taça de vinho em que se deitasse em dança a acidez. A manhã viera nascida tenra, delicada, parecia um sentimento nostálgico e antigo abrasar a esperança de o mundo refazer-se, naquele dia. Sim. Uma saudade. Parecia, naquela manhã, ainda semiescura, perante a claridade mórbida da lanchonete rodoviária, que o mundo retrocedera a algum ponto inexistente, onde tudo era paz e qualquer coisa por dentro, como o afeto e a tenuidade. E, embora fosse assim só um delírio aquilo tudo, tinha um quê de eterno o dia que viria a se passar daí.
A mesa marrom, — manchada, como um gole derramado de leite cor de creme entre o esmalte brilhante e plástico da pintura quase nova —, estava toda descuidada, arranhada, batida, talvez de a mudarem por quantos anos a fio de lado para o outro. O chão, de piso queimado, largo e vermelho de cera viva, refletia o capricho da servente que ainda agora surgia através do pano de chão e do rodo, que impunha insistentemente ao plano do piso, como fora quase desgastar o solo. Um pouco gorda, séria, sisuda mas contente, reduzida absolutamente ao afazer, o rosto bonito e sereno; cria-se pensar acolá em algo como um filho de aniversário, em que guardara o bolo escondido para fazer-lhe a surpresa, ou mesmo um casamento a vir: passados lá seus quarenta anos, por desventura fosse ainda solteira... um contento plausível nos olhos, havia nela.
Na mesa, próximo, ao que a servente se afastava para trás, um senhor já de idade mais antiga observava sua esposa ao balcão comprando salgados, seu café da manhã, decerto; morenos, queimados, os cabelos descuidados, de malas, indo em visitação talvez para algum lugar bem longe e de sol. Lembravam como fossem retirantes, uma visagem bonita de severidade e complacência a dois.
Não passava das 6 e meia, o copo com uísque vinha à boca num próximo gole despreocupado que descia rasgando a garganta matinal. No reflexo de uma geladeira de bebidas de metal velho um tanto espelhado, deixava-se entrever atrás, à porta, a entrada de um sujeito estranho, alto, de sobretudo escuro, verde forte, muito forte. Ele vinha em direção a um’outra mesa como escondesse alguma coisa por detrás das longas vestes, como se fora passar uma mala para um comparsa, detida dos olhos dos demais. Sentou-se, contanto, com um sorriso sem qualquer malícia, como se se preparasse ao trabalho otimista. Sentou-se e ao lado, ainda em outra mesa, estava uma moça, tenuemente assentada meio de lado na cadeira, o corpo curvado sopesando os cotovelos sobre as coxas, as mãos pegadas avante. O rosto parecia de todo cansado. De todo cansada, ela enredava os olhos ao piso, longe de atentar seu reflexo; parecia que olhava para dentro de si. A boca fina, digo: seus lábios, os olhos claros nada definidos, puxados para o verde, o nariz comprido, no entanto nada bruto, os cabelos lisos e miúdos, os olhos profundos, cada vez mais profundos. Deveras estava cansada, exausta. Não tinha filhos, nem marido, vivia sozinha. Nem mesmo a família morava por aqui. A mãe havia morrido, essa lembrança era recorrente agora, e a escola... Era professora da educação especial numa Escola próxima dali.
Vinha dum’outra cidade, ou melhor, d’um distrito próximo. Pegara o ônibus pela manhãzinha, costumeiramente, e chegava assim bem mais cedo que propriamente o horário necessário. Viera ‘só’ no ônibus. Havia uma amiga, mas que faltara hoje, estava muito doente... com câncer. Praticamente, havia de morrer em breve.
Parecia que tinha vontade de chorar, mas olhando com os olhos dela ela tinha era uma tristeza antiga, uma vontade de morrer. Aí que tudo parecera preocupante: a vontade acentuada de morrer lhe fizera esta manhã pensar insistente no suicídio. Não se entendia bem ao certo o motivo, olhar com seus olhos era confuso, propriamente era a confusão demasiada da mente, da vida aturdida na mente da moça que lhe fazia penar; não era a vida, não esta em si: o pensamento de Clara, Clara Maria!, o pensamento dela é que era aturdido.
Tomava fluoxetina, já que o médico lhe receitara, e um calmante para dormir. Já estava habituada a isso. Mas o namorado tê-la deixado era o mais grave. Não era recente, não; há tempo que a tinha abandonado. Na verdade, houve apenas alguns meses de namoro e nada mais. Talvez nem amor. Que graça tinha viver. Ela era feia. Feia e sem-graça. Poderia atirar-se debaixo do Metrô. Sim. Encontrá-la-iam estraçalhada. Dava medo, mas, quem sabe, alguém em sua cidade se comovia. Ou, talvez, ninguém desse a mínima. Mas sentiriam: Um mal-estar pairaria no ar. Faria sim.
Contanto, quase atrás da moça, embora bastante afastado, numa nova mesa, sentava-se um rapaz com cara mal intencionada que lhe assistia insistentemente a bolsa, pendurada no bracinho da banqueta. Ela começou a se dobrar mais e mais sobre o corpo e... caía, de repente, ao chão, um vidro que se partira, em algum ponto daquele lugar.
— Filho d’uma puta!
Assim o homem, à entrada da lanchonete, bradava contra o outro, já cortado pelo vidro quebrado da porta, e tirava assim da cinta um punhal para ralhar um qualquer direito que, de súbito, chegara aos olhos de todos, pelo susto. Anísio levantou-se pasmo de sua mesa, em que observava aos outros, abandonando o copo de uísque e fitando bravamente os olhos do promissor assassino, profundamente, como se quisesse fazer algo, como que se perdendo adentro do pensamento do endemoninhado. Este, tão de súbito quanto aos olhos que lhe voltaram, derrubou ao chão a faca jogando as mãos ao redor das têmporas, atacado de uma visão dolorida ou de uma consciência tardia que lhe chegasse agora. A vítima pôs-se a correr e, desnorteado, est’outro saíra manso e tonto, como que arrependido dos males; quando a segurança levou-o, sem resistência, embora.
Anísio então, voltando-se de súbito, percebeu que a moça com quem se encantara, Clara Maria, havia ido também. Ficara preocupado com os pensamentos dela. Correu até à porta da lanchonete e procurou-a com os olhos pelos arredores da rodoviária: ninguém, ninguém mais ali, ninguém como Clara. Será que cumpriria o que pensara fazer?... Ele poderia ter feito algo!
Acontece que Anísio era uma pessoa especial, dotada de um poder fantástico: Conseguia enxergar os outros não apenas por fora, mas o coração por dentro deles: ver com os olhos deles, observar toda a sua vida íntima e particular, se assim o quisesse. E tinha ainda o poder de tocar-lhes a consciência, imiscuir a sua razão à deles, o que lhe fazia ainda mais forte: um super-herói. Uma vez livrara uma menina da morte incitando um motorista a pisar no freio de súbito, percebendo antes a pancada. Outra vez, vendo alguém que tinha a intenção de estuprar uma moça, fez com que outros o seguissem, salvando assim a menina. Vários livramentos exerceu Anísio silenciosamente, bastava-lhe a ele estar próximo, observar e adentrar-se na mente de quem ali estivesse. Graças a Deus seu coração era assim heroico, no melhor sentido: de abnegado, puro, ingênuo, belo; tinha um amor infinito por dentro, uma vontade enorme de ajudar a todos. E por isso mesmo estava indo embora.
Ali, em Virianópolis, conhecia a todos e todos lhe queriam bem. Contudo, o problema residia em sua vontade imensa de ajudar: quando o não podia, quando perdia a oportunidade, culpava-se, martirizava-se. Ah, quantas vezes poderia ter feito algo, — inclusive à sua mãe! D’outra mão, houve duas ou três vezes em que se equivocou, em que tentou ajudar mas tomou-lhe a ruína. Não que tenha feito grande mal, mas seria melhor não ter feito nada. Assim, movido talvez pela sensação de incômodo e de abandono, decidira ir embora naquele dia, para poder viver em paz, talvez esquecer os outros, viver mais para si, — longe, onde ninguém o conhecesse. Contudo, ali mesmo, na rodoviária da manhã, sua historia se concluiria.
Ao caixa, pagou a dona da lanchonete, tomou sua mala de rodinhas do chão e fora carregando-a corredor adiante. Ia de cabeça baixa. Queria não observar, não mirar nada, não olhar para nada, nem reparar, não profundamente... Assentou-se no banco entre os outros, mas cuidou para que ficasse excluso e desapercebido. Logo, esquecendo-se, começou a perceber as pessoas. Todas comuns, indo para lado e outro por ali. Fazia-o como um poeta que observasse a paisagem. Contanto, havia um homem taciturno, estranho e diferente ali. Ele parecia aflito. Tinha uma bolsa, uma roupa qualquer meio esporte-social, mas calção, sapato e meias. Sisudo. Pareceu-lhe, a Anísio, que houvesse algo temeroso nele, como uma curiosidade cheia de medo. Remexia uma caneta constantemente entre os dedos de sua mão esquerda, como falasse-se ansioso introspectivamente em face de uma anotação, agitado...
Recusou-se a investigá-lo por dentro. Recusou-se, até que não o pode controlar, pelo hábito cruel que tinha de olhar. Adentrara, assim, dos olhos negros para dentro do homem desvelando-lhe a solidão...
Era um gênio. Deveras, talvez o maior de nosso tempo. Descobrira algo sem precedentes, uma fórmula que manipulava a ciência física do nascimento e da morte. Isso o percebia Anísio através dos olhos dele, já que Anísio era absolutamente leigo nas áreas científicas. Manaceu não, este era seu nome. Descobrira uma poção químico-física que, ativada pelo som, atinava-se psiquicamente influenciando a atividade cerebral do ser humano e ainda de alguns animais; algo assim, obscuramente, mas capaz de matar.
Manaceu e Einstein tinham a mesma celebridade, mas Manaceu descobrira a substância interna do pensamento, a metafísica física que o fazia existir, o céu e o inferno da psique humana, a concepção real dos zumbis desde George Romero até o acordar verdadeiro dos mortos da tumba e a possível explosividade de uma matéria sem gazes, sem incidência atmosférica perceptível pelos sentidos do corpo. A razão do instinto e o norte da intelectualidade, sua essência e formação. Bastava para ele um pequeno tubo de ensaio trancafiado na mala e... Algo ainda incompreensível para a ciência, mas que poderia mudar o caminho da humanidade, uma verdadeira revolução. Que poderia destruir ou salvar tudo o que tínhamos por existente em nossa vida. Poderia significar a extinção, mas poderia também significar a redenção de todas as coisas existíveis, visíveis ou etéreas. A paz!
Sem exageros, Manaceu era o prometido herói de toda a humanidade.
Contudo, a verdade é que Manaceu não tinha planos redentores em sua intenção primeira; seu plano era, pelo contrário, ofensivo. Magoado com as coisas, desde a política até a religião, Manaceu partia demente para a destruição imediata do mundo. O amanhã, aos olhos de Anísio, não viria a ser, senão como o começo da morte, como o adormecimento catastrófico da humanidade. Se assim o era verdadeiramente, era horrível enxergá-lo agora.
Anísio, contanto, era o único capaz de salvar a todos do feito assombroso e anônimo que se erigiria pela manhã seguinte, era o único a saber de tudo e, tocando a consciência de Manaceu, poderia também mudar o futuro emergente. Mudá-lo sim, contanto provisoriamente. Impediria no momento, poderia dar-lhe os seus olhos bons por uns instantes e desfazer seus planos para o dia e a noite de hoje, jogando-lhe à mente o entendimento e abrindo-lhe uma consciência terceira, a sua, para ele; mas amanhã... Amanhã Manaceu acordaria novamente e pensaria um’outra vez com seus próprios olhos e planejaria com seu pensamento o mundo que quereria d’ali para adiante. De qualquer forma, cumpriria o mesmo plano, já que seus sentimentos eram magoados demais para retroceder. Um rancor indizível lhe aturdia por dentro, um’úlcera de sentimentos revoltos o feria insistente. Havia apenas uma possibilidade... Anísio poderia tentar suprimir a consciência de Manaceu estourando-lhe, psiquicamente, os miolos. Ou ficaria absolutamente louco e inválido, paraplégico talvez, ou morreria deveras. Era a única solução. Contanto também, por outro lado, embora salvasse assim o mundo, ficara claro que suprimiria uma das maiores, senão a maior inteligência da atualidade do mundo e talvez sua redenção. Não poderia matá-lo, tinha, de alguma forma, que lhe mostrar o reverso, convencê-lo a fazer o bem. Mas como?
Adentrara-lhe em toda a vida e vira mais: Uma doença... Uma doença feria-lhe por dentro, agora Anísio o conseguia ver. Manaceu estava marcado de morte, por isso mesmo que não se importava com nada ou ninguém, nem mesmo consigo. Manaceu na verdade nunca se importou com seu próprio proveito, era um gênio, abnegadamente, mas sua descrença do futuro viera também um tanto pelas dores de um câncer que lhe acometia derradeiramente, sim. Gênio indizível que era mas não pudera descobrir a cura, a morte era a ele e a todos estes inevitável. Tinha só umas duas ou mais semanas de vida, segundo o médico. Mas se ia morrer em breve, quem sabe... pelo poder do toque em sua consciência, quem sabe mudaria o pensamento e desist... Anísio não cria nisso. O homem cumpriria o que vinha fazer, mais cedo ou mais tarde. E o mais tarde era cedo demais. Havia apenas uma coisa ainda a Anísio a fazer: Olhar com seus olhos até a morte, que viria em breve. Para isso, ou vivera colado a ele ou...
Manaceu, num repente, então, ajuntou a mala do chão, que deixara aflito deitada a seu lado, com a mão direita, e seguira para a porta de saída da rodoviária, indo um pouco assustado, no entanto silente, pegar o taxi para alentar-se de volta ao lar, desistindo de seguir com o plano. Mais ao fundo, o corpo de Anísio se prostrara curvo e morto ao chão, quando os seguranças repararam que o homem ali não dormia.
Anísio transferira, em ato anônimo e fatal, su’alma ao corpo do gênio louco e passara a viver a vida em Manaceu, que iria destruir o mundo antes de suportar a dor de um câncer e morrer. E assim cumprira o seu destino e o dele e nunca mais se viera a ouvir seu nome em Virianópolis... nem em nenhum lugar do mundo.