A Cura, Ou Nada

Às vezes meus pensamentos me são tão claros. Algumas vezes específicas, por uma razão que eu sei bem qual é, mais ainda.

Por não ter o que fazer a respeito, eu queria muito poder ao menos entender por que eu sinto o que eu sinto.

Pra ficar claro do que eu estou tratando, é o seguinte: finalmente estou dando aulas. Aliás, nem isso! Nem aula dei ainda, mas é como se já estivesse lecionando, porque já comecei um trabalho. A coisa toda mora aí, eu arrumei o que fazer pra ganhar dinheiro, estou comprometido. E isso agora faz eu me sentir mal. É aí que eu não entendo.

A coisa mental se manifesta no meu corpo. Muitas verdades eu vejo, muitos fatos me estão claros, mas, ainda assim, essa contradição se manifesta no meu corpo, na altura do meu estômago. Eu não sei dar nome, mas, tentando agora, chamaria de ansiedade.

Estive sem trabalhar por um tempão. Foram bem uns dois anos. Arrumei uma namorada nesse tempo, e ela nunca me viu “render”. Arrumei uma filha nesse tempo – que ainda não nasceu, estamos de sete meses. Depois de muitas discussões, argumentações, análises, fingimentos, preguiça, medo e outras coisas, eu arrumei o que fazer. Voltei a dar aulas de inglês. Eu já havia feito isso antes. E essa sensação já existia, eu só não era tão explícito comigo mesmo. Melhor ainda, os pensamentos só não me eram assim tão claros, não havia essa conversa livre e segura que mantenho dentro de mim e que existe por trás destas palavras. Eu não me assistia com tanta atenção.

Hoje eu comecei o meu trabalho. Foi bem divertido. No entanto, parece que o que falta pra eu me sentir iniciado ainda esteja por vir. Mas conhecendo os hábitos que possuo, eu não fico seguro de que isso sequer seja verdade, porque essa sensação de aprisionamento se repete com muita frequência, em uma escala ou outra, em uma dimensão ou outra. Eu vejo, e isso é um fato claro e irrestrito.

O que eu tenho que fazer agora é lecionar. Preciso preparar aulas aos alunos que pagam uma quantia elevada à escola para aprenderem o idioma, e essas aulas devem ser preparadas segundo os critérios escolhidos pela empresa. Enfim, lecionar.

Pra que tudo ocorra como é esperado, essa empresa possui um corpo que é literalmente humano. São muitas pessoas, com muitas funções, movendo-se em uma sintonia muito específica, de acordo com os mesmos padrões, e juntas essas pessoas são uma coisa só, que se sustenta, que se ordena, que se mantém e ocasionalmente se machuca, como todo corpo humano que eu já vi na minha vida.

Eu, agora, componho esse corpo. Evidentemente me machuco, sozinho.

Essa sensação que eu sinto – e eu disse que se manifesta no corpo, mais ou menos na altura do estômago, somada de um cansaço esquisito nos ombros –, eu sei de onde vem. Ela só aparece quando eu penso “no esperado”. O esperado por todos. Esperado por todo esse corpo. Por todas as pessoas e suas funções, sendo dentre elas as que me dizem respeito as que mais me interessam, porque elas ME dizem respeito. A mim. E eu não quero ser a parte do corpo que se machuca, então eu me machuco e me sacrifico, sozinho, em função desse outro corpo que não é meu. Por que eu faço isso? Vejamos.

Apenas quando eu penso. Não há outro berço pra essa dor, como pra nenhuma outra. Ela só aparece quando eu penso. Esse pensamento é o meu desejo. A vida que eu queria viver, por um microinstante dela, é aquela que eu projeto na minha cabeça. Mas como eu poderia desejar tanto isso sem simultaneamente temer que fosse o contrário, que tudo me saísse um desastre? É esse medo que está no meu estômago, como se eu tivesse comido um monte dele e depois viesse a descobrir que medo é uma coisa terrivelmente indigesta. Medo e desejo. Afinal, um é o tempero do outro, como se nota.

Às vezes tento inventar uma desculpa. “Ah, se não fosse isso.” “Se não fosse aquilo.” Nunca me adianta pensar no que seria se não fosse, porque se não fosse não seria. O problema é que a coisa é, simplesmente é, dói, machuca, incomoda, pesa e dá azia. Evidentemente os alunos esperam alguma coisa da empresa, que espera alguma coisa de si mesma, na forma de um diretor, na forma de um gerente, na forma de um coordenador pedagógico, na forma de um professor, na minha própria forma. E não sair conforme o esperado está fora de cogitação, e é por isso que se cogita tanto. Por isso mesmo dói.

As bases são nítidas. As propostas satisfazem-se mutuamente. Quem não sabe busca quem sabe, e, pra que fique justo, dá algo em troca, pois naturalmente há egoísmo. Ora, a mim vêm os que não sabem. Eu sei. É justo. Mas isso não basta, porque, embora estejam nítidas as bases, o que rege são os detalhes. E o que os detalhes dizem é que há o que organiza essa troca justa – o corpo. E o corpo controla como se troca, quanto se troca, o quê. Esse corpo não é meu, mas me comprometi a ser uma de suas partes. Temos aqui mais esse fato, e tudo isso eu também vejo com coragem.

Hoje, meu trabalho não foi sequer lecionar. Foi algo mais fácil. Tive apenas que monitorar os alunos que faziam seus exercícios sozinhos. Corrigi erros, estimulei tentativas, promovi mais práticas. O momento fez diluir aquele mal estar, e tudo pareceu colorido e animado novamente. Eu me senti vivo – acho que isso expressa bem o que é estar em paz. Pensar nessa mesma turma, pra amanhã, já não me assusta tanto. Então o caso parece mesmo ser ainda faltar completar a “iniciação”.

Terei essa mesma turma pra monitorar de segunda à quinta-feira, no período da manhã. Às terças e quintas, vou dar aulas a um grupo de adolescentes à tarde. E, acabo de receber a oferta por email, possivelmente terei, a partir da semana que vem, um grupo à noite, também de segunda à quinta. Adultos.

Pensar em tudo isso me perturba.

Assim, tendo tudo muito claro, o resumo é que eu preciso entregar aulas como esperam que eu entregue. Vejamos, por qual fim? Dinheiro. É só essa a finalidade real e incontestável. Aos alunos é dinheiro, à empresa é dinheiro, a cada parte que compõe o corpo dessa empresa, dinheiro, a mim, dinheiro. Mesmo porque, francamente, se houvesse qualquer outro interesse, nada disso existiria. Sequer alguém pagaria tamanha quantia pra aprender inglês, porque as raízes do interesse estariam em outro lugar, e claramente o produto seria também de outra espécie. É por isso que a esse ato chamamos “investimento”, porque se visa um lucro. Tudo isso também é muito claro, e esses fatos, também vejo a todos humildemente.

Estou muito longe em mim mesmo. Enxergo partes muito obscuras da minha consciência. Mas ainda não entendi por que, mesmo vendo tudo isso, essa sensação não desaparece e a paz não reina. O que falta mais além da morte?

Às vezes penso que é justamente ela, a morte, mas em outra dimensão, numa dimensão mais psicológica, num plano onde a vida já morreu, mas finge que vive, nessas memórias feitas do passado, na identidade que quer se proteger, no eu. Essa coisa não aceita morrer, e tem medo de se machucar. Eu tenho medo de me machucar. Isso também é verdade, e esses fatos todos a sabedoria também ilumina pra que eu veja.

Mesmo assim, mesmo atento, não passa, a coisa não desaparece, a besta não morre. E já que eu não tenho o que fazer, eu só queria mesmo entender por quê. O que eu ainda não vi?

Em todo caso, até que a morte seja definitiva, enquanto doer eu me assisto sangrar. Sem mais paliativos! Pra mim, a cura, ou nada.

Julião Morsa
Enviado por Julião Morsa em 13/02/2017
Reeditado em 13/02/2017
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