98% vidro
A recordação que certa vez me alegrou, clara e evidentemente, ainda me faria feliz. Esqueçamos o quando, desconsideremos o onde, generalizemos o quem. Éramos eu e mais alguém.
Acordo e faço academia. Já quis ser magro. Arrumo-me e vou pra faculdade. Já quis ter ótimas notas. Ligo o computador e me conecto. Já tive companhia infalível. Durmo, mas antes dou boa noite. Já tive a quem desejar bons sonhos.
Terminou, e era difícil de acreditar. Com o tempo, peguei-me tentando. Hoje, consigo e ponto. Apaguei, para sempre, as histórias em que a protagonista se atropela em inverdades. Eliminei, para sempre, os contos em que o protagonista se ilude em insustentáveis mudanças.
Dos 100% de mim, 98% é vidro e 2% é Alguém. Fui, honrosamente, insultado em público. Fui caracterizado como, tragicamente, hipócrita. Fui responsabilizado por, ironicamente, estilhaçar quem já estava em pequenos pedaços.
Talvez eu seja mesmo hipócrita: recordações felizes não serão, necessariamente, eternas alegradoras. Talvez eu seja mesmo o responsável: quebrar-me-ei em pequenos pedaços para retribuir meu desfavor. Uma vez estilhaçado, ei de me recompor sem os 2%, que não mais importam.
Alguém, certa vez, pediu-me para não dizer sequer uma palavra.
Desculpe-me, mas estou apressado e sem tempo no caminho que nos levará ao nunca. Sabe como são refeitos os fragmentados copos de vidro? Depois de quebrados em mil partes, eles são fundidos em altíssimas temperaturas e recriados em novas formas e modelos.
Dessa loucura que compartilhamos, Alguém, eu saí mais bonito, polido e, felizmente, opaco. O copo meio cheio que me tornei jamais matará a sede dos teus lábios de boneca. Se vire pra segurar a barra que será lembrar-se de mim.