PRODUÇÃO TEXTUAL SOBRE BIOÉTICA na Revista HCPA

1. Discuta em grupo a origem e a complexidade da bioética.

2. produza um texto dissertativo ou um verbete sobre bioética.

3. Analise artigos e reportagens sobre a bioética hoje.

obs. : O texto deve ter em torno de 20 linhas. Faça a revisão de seu texto e dê um título.

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BIOÉTICA: ORIGENS E COMPLEXIDADE

BIOETHICS: ORIGINS AND COMPLEXITY

José Roberto Goldim

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A ORIGEM DA BIOÉTICA

Em 1927, em um artigo publicado no periódico

alemão Kosmos, Fritz Jahr utilizou pela primeira vez a

palavra bioética (bio + ethik). Esse autor caracterizou a

Bioética como sendo o reconhecimento de obrigações

éticas, não apenas com relação ao ser humano, mas para

com todos os seres vivos (1). Esse texto, encontrado por

Rolf Löther, da Universidade de Humboldt, de Berlim, e

divulgado por Eve Marie Engel, da Universidade de

Tübingen, também da Alemanha (2), antecipa o

surgimento do termo bioética em 47 anos. No final de

seu artigo, Fritz Jahr propõe um “imperativo bioético”:

respeita todo ser vivo essencialmente como um fim em

si mesmo e trata-o, se possível, como tal.

Anteriormente, a criação do termo bioética era

atribuída a Van Rensselaer Potter, quando publicou um

artigo (3), em 1970, caracterizando-a como a ciência da

sobrevivência. Na primeira fase, Potter qualificou a

Bioética como Ponte (4), no sentido de estabelecer uma

interface entre as ciências e as humanidades que garantiria

a possibilidade do futuro.

A Bioética teve uma outra origem paralela em língua

inglesa. No mesmo ano de 1970, André Hellegers

utilizou esse termo para denominar os novos estudos que

estavam sendo propostos na área de reprodução humana,

ao criar o Instituto Kennedy de Ética, então denominado

de Joseph P. and Rose F. Kennedy Institute of

Ethics.

Posteriormente, no final da década de 1980, Potter

enfatizou a característica interdisciplinar e abrangente

da Bioética, denominando-a de global (5). O seu objetivo

era restabelecer o foco original da Bioética, incluindo,

mas não restringindo, as discussões e reflexões nas

questões da medicina e da saúde, ampliando as mesmas

aos novos desafios ambientais. Vale lembrar que o pen-

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samento de Potter teve como base a obra de Aldo

Leopold, que criou, na década de 1930, a ética da terra

(land ethics) (6). A proposta de Leopold ampliou a discussão

feita por Jahr ao incluir, além das plantas e animais,

o solo e demais recursos naturais como objeto de

reflexão ética.

Em 1998, Potter redefiniu a Bioética como sendo

uma Bioética profunda (deep bioethics). A influência para

uso dessa qualificação foi a ecologia profunda de Arne

Ness (7). A Bioética profunda é “a nova ciência ética”,

que combina humildade, responsabilidade e uma competência

interdisciplinar, intercultural, que potencializa

o senso de humanidade.

A Bioética, dessa forma, nasceu provocando a inclusão

das plantas e dos animais na reflexão ética, já

realizada para os seres humanos. Posteriormente, foi proposta

a inclusão do solo e dos diferentes elementos da

natureza, ampliando ainda mais a discussão. A visão

integradora do ser humano com a natureza como um

todo, em uma abordagem ecológica, foi a perspectiva

mais recente. Assim, a Bioética não pode ser abordada

de forma restrita ou simplificada. É importante comentar

cada um dos componentes da definição de Bioética

profunda de Potter – ética, humildade, responsabilidade,

competência interdisciplinar, competência

intercultural e senso de humanidade – para melhor entender

a necessidade de uma aproximação da Bioética

com a teoria da complexidade.

A BIOÉTICA E A ÉTICA

Atualmente, a ética passou a fazer parte do discurso

da população, dos meios de comunicação, de profissionais

de várias áreas, com seu significado nem sempre

utilizado de forma correta. Talvez devido ao pouco

conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da

ética, muitas não sabem propriamente o que é a ética,

qual a sua finalidade e como ela atua.

Muitas vezes, a palavra ética é utilizada também

como adjetivo, com a finalidade de qualificar uma pessoa

ou uma instituição como sendo boa, adequada ou

correta. Esse uso pode ter sido influenciado pela definição

de ética proposta por George Edward Moore, de que

ela é “a investigação geral sobre aquilo que é bom” (8).

O ideal é sempre utilizá-la na forma adverbial, ou seja,

ela própria merecendo ser qualificada – eticamente adequada

ou eticamente inadequada –, mas não pressupondo

que a ética, no seu sentido substantivo, sempre se

associe ao bom, ao adequado e ao correto.

Ricardo Timm de Souza afirmou que a maior revolução

epistemológica do pensamento ocidental foi a

proposta por Emanuel Lévinas, ao postular que a ética

fosse considerada como filosofia primeira, invertendo a

subordinação tradicional à lógica e à ontologia (9).

Três autores contemporâneos podem auxiliar na

compreensão adequada dessas questões fundamentais.

Adolfo Sanches Vasques caracterizou a ética como sendo

a busca de justificativas para verificar a adequação

ou não das ações humanas (10). Joaquim Clotet afirmou

que a “ética tem por objetivo facilitar a realização

das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si

mesmo como tal, isto é, como pessoa” (11).

Complementando, Robert Veatch dá uma boa definição

operacional de ética ao propor que ela é “a realização

de uma reflexão disciplinada das intuições morais e

das escolhas morais que as pessoas fazem” (12).

A BIOÉTICA E A HUMILDADE

A humildade é uma virtude, ou seja, um traço

adequado do caráter de uma pessoa (13). Potter definiu

humildade como sendo a conseqüência apropriada que

segue a afirmação “posso estar errado” e exige responsabilidade

de aprender com as experiências e conhecimentos

disponíveis (14).

Durante um longo período da história da humanidade,

pensou-se que seria possível conhecer a totalidade

das informações sobre um determinado tema. Ao atingir

esse nível de conhecimento, seria possível conhecer

todo o seu passado e também o seu futuro. A essa possibilidade,

foi dado o nome de “demônio de Laplace”, pois

quem detivesse todo esse conhecimento tudo poderia

prever.

Werner Heisemberg, na década de 1930, formulou

o princípio da incerteza, demonstrando a impossibilidade

de conhecer simultaneamente a posição e a velocidade

de uma partícula. Essa impossibilidade de poder

conhecer tudo provocou, em conseqüência, o “exorcismo

do demônio de Laplace” (15).

Atualmente, é aceito que o tempo é uma variável

fundamental em todo e qualquer processo. Ele provoca

mudanças, e mais do que isso: associando-o à

indeterminação, os processos não só mudam como podem

mudar a sua própria maneira de mudar.

A inclusão das noções de indeterminação e de mudanças

provocadas pelo tempo alterou definitivamente

as discussões científicas. Contudo, não houve a esperada

contrapartida de humildade de grande parte dos cientistas

e de outros profissionais envolvidos com a geração e

aplicação do conhecimento. Hans Jonas, já em 1968, disse

que “a humildade seria necessária como um antídoto

para a ruidosa arrogância tecnológica atual” (16).

Na Bioética, a humildade é uma característica fundamental.

Ao assumir que a incerteza e a mudança são

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componentes sempre presentes, assume-se, igualmente,

que os resultados das reflexões são sempre passíveis

de discussão. A humildade permite reconhecer que não

são definitivos nem imutáveis.

A BIOÉTICA E A

RESPONSABILIDADE

Os conhecimentos e discussões gerados pela

Bioética e pela ecologia contribuíram para ampliar a

noção de responsabilidade. Durante muito tempo, ela

era associada apenas aos deveres existentes entre seres

humanos contemporâneos e geograficamente próximos.

Peter Singer desencadeou, no início da década de

1970, um grande debate sobre os direitos dos animais.

Fritz Jahr, em 1927, já havia proposto, segundo suas próprias

palavras, um imperativo bioético: “Respeita, em

princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e

trata-o como tal, na medida do possível” (1). O próprio

título de seu artigo propunha uma visão da Bioética como

sendo um “panorama sobre as relações éticas dos seres

humanos para com os animais e as plantas”. A inclusão

das plantas na discussão bioética é ainda altamente inovadora,

mesmo nos dias atuais.

Em 1948, Aldo Leopold, em seu texto sobre ética

da terra, fez outra ampliação dessa discussão, quando

postulou o direito das gerações futuras a receberem um

ambiente preservado (6). Nessa mesma tradição, Hans

Jonas, em 1968, propôs um outro imperativo, com a finalidade

de prevenir possíveis conseqüências das ações

humanas: “Nas tuas opções presentes, inclui a futura

integridade do ser humano entre os objetos da tua vontade”

(16).

A expansão dessa discussão sobre direitos e deveres

com a inclusão de todos os seres vivos, tanto contemporâneos

quanto ainda não existentes, amplia a responsabilidade

e a perspectiva atual da Bioética, como já

haviam antecipado Fritz Jahr e Van Rensselaer Potter.

A ecologia profunda, de Arne Ness, que serviu de

base para a terceira definição de Bioética de Potter, já

havia rompido com a perspectiva usual da relação dos

seres humanos com a natureza, no sentido de domínio

sobre a mesma – em que o ambiente natural era visto

apenas como um recurso para ser desfrutado, considerando

os demais seres vivos como inferiores – e de centrar

essas discussões políticas apenas no âmbito nacional. A

sua proposta visava gerar uma relação harmoniosa com

a natureza, reconhecendo-a como tendo valor intrínseco

e buscando o reconhecimento da igualdade entre

as diferentes espécies, e esta perspectiva deveria ser discutida

na abrangência de biorregiões, além de reconhecer

as tradições das minorias (7).

Atualmente, discutir apenas a preservação do

ambiente natural passou a ser uma tarefa difícil e até

mesmo ultrapassada. A diferenciação entre objetos artificiais

e objetos naturais, que pode parecer imediata e

sem ambigüidade, na realidade não o é. Essas diferenças

não são nem imediatas nem estritamente objetivas (17),

tamanho o grau da intervenção humana e das inter-relações

existentes.

A preservação apenas de ambientes naturais

intocados por si só os tornaria artificiais, pois, ao protegêlos,

estariam sendo impostas barreiras artificiais de acesso

e utilização. As reservas e parques naturais são exemplos

dessa ambigüidade entre o natural e o artificial, entre

o natural e o naturalizado (Lenoir).

Na área da saúde, essa questão também está cada

vez mais presente. Distinguir os processos de ação naturais

do organismo humano dos provocados por intervenções

externas a ele pode ser difícil e, em determinadas

situações, impossível.

As intervenções, quando avaliadas de uma perspectiva

ecológica, deixam de ter apenas uma conotação

individual, passando a merecer uma discussão com as

demais pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A

ética da razão comunicativa de Karl-Otto Apel deu uma

importante contribuição nesse sentido. Ao levar em conta

as conseqüências diretas e indiretas das ações realizadas

e por utilizar o discurso argumentativo exercido por

todos os indivíduos para obter normas consensuais, torna-

os co-responsáveis por todas as ações (18).

Hans Jonas, ao propor a ética da responsabilidade,

já havia dito que “nenhuma ética anterior tinha de

levar em consideração a condição global da vida humana

e o futuro distante ou até mesmo a existência da espécie.

Com a consciência da extrema vulnerabilidade

da natureza à intervenção tecnológica do homem, surge

a ecologia” (19) – ecologia que veio trazer uma nova e

complexa visão da inserção dos seres humanos no conjunto

da natureza.

A BIOÉTICA E A COMPETÊNCIA

INTERDISCIPLINAR

A competência interdisciplinar é, das características

citadas na definição de Potter, a que mais apresenta

confusão e ambigüidade. Várias palavras são utilizadas

de forma confusa, como se fossem sinônimos, e à própria

palavra interdisciplinaridade têm sido atribuídos

diferentes significados.

A interdisciplinaridade, segundo Valdemarina B.

de Azevedo e Souza, só ocorre quando existe interação

de pessoas; ela necessita da troca de saberes e opiniões.

As condições necessárias para que a interdisciplinaridade

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ocorra são as seguintes: a existência de uma linguagem

comum; objetivos comuns; reconhecimento da necessidade

de considerar diferenças existentes; domínio dos

conteúdos específicos de cada um dos participantes; e

elaboração de uma síntese complementar (20).

Essa síntese complementar já era prevista na

dialética de Heráclito como produto da oposição entre

a tese e a antítese. A síntese é uma maneira nova e mais

complexa de abordar uma mesma questão (21).

Carlos Roberto Cirne-Lima comentou que a tese

do pensamento pós-moderno é a de que “a razão, una e

única, morreu, vivam as múltiplas razões com seus

relativismos”. A pós-modernidade, ao negar a existência

de princípios ou leis universais, pode gerar uma fragmentação

das diferentes visões de mundo. Apesar dessas

críticas, uma vantagem desse tipo de posicionamento

é que ele gera, talvez, maior humildade e tolerância, por

dar mais atenção aos demais envolvidos (21).

Uma perspectiva mais contemporânea permite

reconhecer que os pensamentos analítico e dialético não

são excludentes. O pensamento analítico traz consigo

maior clareza, mas tem o risco da fragmentação, da

compartimentalização de saberes. O pensamento

dialético, por outro lado, tem a vantagem de permitir a

inclusão da totalidade dos elementos considerados, porém

também pode gerar uma postura totalitária (21).

A incorporação de conceitos da teoria geral de sistemas,

como os de sistemas fechados e abertos, é fundamental

para a adequada compreensão da

interdisciplinaridade necessária à Bioética. Os sistemas

fechados têm interação apenas entre os seus próprios

elementos. Os sistemas abertos, por sua vez, mantêm

interação também com elementos externos, trocando

informações dentro e fora de seus limites (22).

Durante muito tempo, a relação profissional-paciente,

por exemplo, foi considerada como sendo um

sistema fechado, onde apenas esses dois elementos contavam.

Com a crescente participação da família, das

empresas de seguro e de outros profissionais prestadores

de serviço, o sistema teve que ser aberto para ser adequadamente

entendido.

Outra grande contribuição da teoria dos sistemas

foi o reconhecimento da existência de relações não-lineares

e da realimentação. Um efeito pode ser determinado

por mais de uma causa, caracterizando uma relação

convergente ou multicausal. Da mesma forma, uma

única causa pode gerar mais de um efeito, recebendo a

denominação de relação divergente. A possibilidade de

que um efeito ou conseqüência altere a sua própria causa

é a base da realimentação. Assim, a relação causa/

efeito pode ser invertida, gerando a possibilidade da ocorrência

de um ciclo de ações que podem se estimular (realimentação

positiva) ou se inibir (realimentação negativa).

Essa nova maneira de entender o funcionamento

dos seres vivos alterou definitivamente a visão de

linearidade e unidirecionalidade das ações (22).

Reconhecer que as interações podem ocorrer de

forma múltipla e que atuam de forma diferenciada nos

processos de equilíbrio foi uma das grandes contribuições

de Jean Piaget. Além da realimentação, que gera a

regulação do sistema, Piaget incorporou também a noção

de operação do sistema, baseada na pré-alimentação.

Ela é uma antecipação de possíveis situações futuras,

isto é, uma pré-correção, que ocorre em decorrência

das experiências prévias do indivíduo (23). A préalimentação

é pró-ativa. Dessa forma, o processo de

controle do sistema ocorre com base na operação (préalimentações)

e na regulação (realimentações) (24).

Assumir que o indivíduo se acomoda frente ao

outro ou que o outro assimila a ação do indivíduo é usual.

A inovação de Piaget foi entender dialeticamente

essa interação. Nessa abordagem, não é o indivíduo nem

o outro, mas sim o espaço de troca existente entre eles

que possibilita a ocorrência dessas interações. Essa nova

perspectiva gerou a necessidade de se entender, também,

como ocorrem as diferentes formas de equilíbrios,

desequilíbrios e reequilíbrios (25).

A forma mais clássica de equilíbrio biológico é a

da homeostase. Ela foi descrita por Walter D. Cannon

como sendo um equilíbrio dinâmico de um determinado

estado, obtido a partir das interações dos diferentes

elementos envolvidos (26). A esse equilíbrio

de estado, foi acrescido o equilíbrio de processo, denominado

de homeorrese, que é o responsável pela

manutenção, ao longo do tempo, de diferentes

homeostases. A homeorrese é o processo dinâmico e

histórico que permite a preservação de uma sucessão

de diferentes eventos. A homeostase é conservadora,

mantém o seu equilíbrio anterior ao desequilíbrio

imposto. Já as reequilibrações, com a participação da

homeorrese, não retornam às suas condições e equilíbrios

anteriores, senão em alguns casos. Geram, isto

sim, novos e melhores equilíbrios, permitindo a autoorganização

(25).

As estruturas próximas ao equilíbrio são repetitivas

e universais, sempre tendo a perspectiva de ir da ordem

à desordem. As estruturas distantes do equilíbrio, ao

contrário, são específicas e únicas, permitindo ir da desordem

a uma nova ordem. Essas estruturas que geram

novas ordens, novos equilíbrios, que se auto-organizam,

são chamadas de estruturas dissipativas (15).

De acordo com o tetragrama de Edgar Morin (27),

a passagem da ordem para o caos se dá pelo aumento do

número de interações. Por outro lado, quando um sistema

está em estado caótico, pode surgir um evento ou

processo organizador que gere uma nova ordem. O maiRevista

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90 Rev HCPA 2006;26(2)

or organizador é a informação (22). Esta nova ordem,

por sua vez, propiciará novas interações, que possibilitarão

esta alternância de estados de ordem e caos, em

grau crescente de complexidade. Morin denominou esta

perspectiva entre ordem e desordem de dialógica, pois

antes de se oporem de forma excludente, estes estados

geram um ao outro sucessivamente. Caso não ocorra

um evento organizador, o sistema se desintegra devido

ao estado de caos em que se encontra (28).

Dentro desta perspectiva, um ponto interessante

a ser discutido, é a questão de como conciliar mudança

e permanência em um processo. Demócrito já havia afirmado

que tudo no universo é fruto do acaso e da necessidade.

Jacques Monod retomou este tema e caracterizou

o acaso como o elemento gerador das mudanças e a

necessidade como sendo a responsável pela coerência

do processo (17). A necessidade gera coerência no processo

e não obrigatoriamente antevisão ou antecipação

de um estado final pré-planejado.

Todos estes processos e propostas permitiram criar

a possibilidade de uma perspectiva realmente

pluralista. Nesta visão, a realidade é tida como uma, diversa

e transformável, as posições contrárias são possibilidades

de novas sínteses e a mediação de conflitos é

feita com participação e negociação efetiva (29).

Nesta nova perspectiva plural de encarar a realidade,

novas lógicas são possíveis de serem utilizadas,

sendo a Teoria dos Jogos uma delas. A própria Bioética

pode utilizar a Teoria dos Jogos na avaliação de problemas.

Nesta Teoria as possibilidades são avaliadas através

das alternativas possíveis, das regras estabelecidas,

dos fatos que já ocorreram e do dever-ser, através das

estratégias e táticas utilizadas (30).

Segundo Duílio de Ávila Bérni existem várias características

que devem ser avaliadas quando um processo

está sendo avaliado utilizando-se a Teoria dos

Jogos. A natureza da escolha é a primeira delas. Devese

avaliar se os participantes farão uma escolha sincera

ou uma escolha estratégica. O tipo de jogo, se estratégico

ou baseado no acaso, ou de azar, como se diz

coloquialmente. A condição de entrada no jogo pode

ser considerada fraca, quando o participante pode optar

por jogar ou não, ou forte quando existe coerção

impedindo a manifestação de sua vontade. A quantidade

de jogadores e o número de estratégias possíveis

são duas outras características. A determinação ou

indeterminação na maneira de jogar é importante de

ser caracterizada. A forma de distribuir os recursos

advindos do jogo pode assumir três modos básicos: jogos

de soma zero, quando um ganha e outro perde obrigatoriamente,

jogos de soma positiva, quando existe a

possibilidade de todos os participantes ganharem, e

jogos de soma negativa, quando todos podem perder.

Os participantes podem ter estilos de interação

colaborativo ou não-colaborativo. As suas interações

podem ser estáticas ou dinâmicas. As ações desempenhadas

no jogo podem ser simétricas ou assimétricas.

As movimentações podem ser ordenadas de forma que

as decisões sejam seqüenciais ou simultâneas. As informações

disponibilizadas podem ser perfeitas ou imperfeitas,

nas decisões seqüenciais ou então completas

ou incompletas nas simultâneas. A condição de equilíbrio

do jogo pode basear-se em chances iguais, que é

denominada de estratégia pura, ou desiguais. Caracterizando

uma estratégia mista (31). Todas estas características

podem ser transpostas às questões avaliadas

pela Bioética.

Uma importante questão que não pode ser esquecida

é que mesmo havendo a avaliação analítica

das características de um processo existem dois fatores

que sempre influenciam o processo de tomada de

decisão, que são o sistema de crenças e os desejos das

pessoas envolvidas. Assumir estes dois fatores amplia

em muito a complexidade dos problemas, pois cada

um dos participantes pode ter crenças e desejos peculiares

e concorrentes. O chamado modelo racional

para tomada de decisões, proposto por Francisco Araújo

Santos incorpora estes dois elementos que podem

provocar alterações desde a etapa de percepção das

evidências que geram a necessidade de tomar uma

decisão (32).

Finalizando as questões referentes a

interdisciplinaridade, já estavam presentes desde o início

das discussões mais sistemáticas sobre a Bioética.

Van Rensselaer Potter, no seu primeiro artigo, publicado

em 1970, afirmava que “esta nova ética

(Bioética) pode ser chamada de ética interdisciplinar,

definindo interdisciplinaridade de uma maneira especial

para incluir tanto a ciência como as humanidades,

mas este termo é rejeitado pois não é autoevidente”

(3). Mais recentemente, Onora O’Neall

ressaltou ainda mais esta característica quando definiu

que a “Bioética não é uma disciplina, nem mesmo

uma nova disciplina; eu duvido se ela será mesmo uma

disciplina. Ela se tornou um campo de encontro para

numerosas disciplinas, discursos e organizações envolvidas

com questões levantadas por questões éticas,

legais e sociais trazidas pelos avanços da medicina,

ciência e biotecnologia” (33).

Os problemas propostos para reflexão bioética ficam

mais claros quando discutidos dentro de uma perspectiva

interdisciplinar. Muitas das ferramentas apresentadas

- convergência, divergência, realimentação

positiva e negativa, homeostase, homeorrese, processos

de tomada de decisão – podem facilitar a compreensão

e auxiliar na busca de possíveis soluções.

BIOÉTICA: ORIGENS E COMPLEXIDADE

Rev HCPA 2006;26(2) 91

A BIOÉTICA E A COMPETÊNCIA

INTERCULTURAL

A competência intercultural poderia ter sido incluída

na própria questão da interdisciplinaridade, pois

é fruto do reconhecimento da humildade e da tolerância

entre diferentes grupos e culturas. A Bioética tem

que assumir esta perspectiva intercultural de compreensão

da realidade para poder ser utilizada de forma

conseqüente e abrangente.

Um dos maiores estudiosos na questão

intercultural é Geert Hofstede. Em seus estudos ele conseguiu

caracterizar cinco pontos básicos que diferenciam

ou igualam as culturas nacionais: a relação com a

autoridade; a relação do próprio indivíduo com a sociedade;

o conceito individual de masculinidade e feminilidade;

s formas de lidar com conflitos e incertezas e a

perspectiva de longo prazo (34).

Um grande número de populações de diferentes

países já foi avaliado através destas características obtendo-

se resultados bastante inovadores. Em todos os países

também existem peculiaridades culturais regionais que

também devem ser consideradas. O importante é lembrar

que não existe um só modo de encarar a realidade

que seja considerado correto. A pluralidade deve ser igualmente

aqui considerada como fundamental, contudo, sem

cair num relativismo onde tudo é considerado como válido,

desde que respaldado por uma cultura local.

A BIOÉTICA E O SENSO DE

HUMANIDADE

JB Schneewind descreveu que as interações entre

seres humanos migraram de um comportamento egoísta,

onde o outro é utilizado por mim para atingir aos

meus objetivos, para o altruísmo, quando um indivíduo

se doa integralmente ao outro. No dizer de Augusto

Comte, criador do termo, altruísmo é “viver para outrem”.

Mas existe um estágio posterior onde não há nem

o uso nem a doação, mas sim uma troca sincera entre os

participantes, quando ocorre a solidariedade (35).

André Comte-Sponville definiu “Bioética, como

se diz hoje, não é uma parte da Biologia; é uma parte da

ética, é uma parte de nossa responsabilidade simplesmente

humana; deveres do ser humano para com outro

ser humano, e de todos para com a humanidade” (36).

Este senso de humanidade é inerente e fundamental

à Bioética. Pensar Bioética é pensar de forma solidária,

é assumir uma postura íntegra frente ao outro e,

conseqüentemente, frente à sociedade e à natureza.

Com base nestas colocações a respeito da definição

de Potter para uma Bioética profunda, e retomando

a definição inicial de Jahr, é possível afirmar que a

Bioética é uma reflexão compartilhada, complexa e

interdisciplinar sobre a adequação das ações que envolvem

a vida e o viver.

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ethichen Beziehung des Menchen zu Tier und

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17. Monod J. O acaso e a necessidade. Petrópolis:

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18. Weber T. Ética e filosofia política: Hegel e o

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Enviado por J B Pereira em 28/09/2013
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