Nossa biblioteca

Antes que chegasse a vez dos compêndios escolares abarrotarem o armário médio de portas de correr envidraçadas - se me engano, uma obra da carpintaria do Gil ou do João Pessoa - nossos livros domésticos não davam quorum para o que se possa chamar biblioteca, ainda que em estado embrionário. Mas nem assim

sentiam-se desvalorizados.

O dicionário, por exemplo, sentia-se como o pai-de-todos, daquela diminuta e heterogênea prole pro-livresca. Robusto feito ele só, tinha sempre a palavra que se

procurava e que a gente, no mais das vezes, conseguia encontrar. Chegara em nossa casa como uma premiação a uma resposta que papai dera - por escrito - num daqueles desafios de rádio, ainda do tempo em que ter telinha nem Telê Santana tinha. E do rádio era a voz do Brasil, assim com eram dourados os seus anos, de Marlene e Emilinha.

Livro mesmo era o Almas Infantis, com suas quase cem páginas ilustradas por Luís Sá. Era uma obra didática, destinada a ensinar os pais a ensinarem a si e aos filhos. Volta e meia, papai lia pra gente uma historinha, mas o que nos fazia rir mesmo eram as ilustrações, em preto e branco embora, mas que significativas, ora.

E aí, vinham duas revistas: uma Chácaras e Quintais, e outra, de idêntico naipe, a Cultura dos Cítricos. Ambas haviam sido dadas a papai pelo tio de mamãe, o Leopoldo que, regressando de um curso em Viçosa, havia guardado na cachola o que lhe interessava e as revistas, assim, nô-las repassava. E de lambuja, ensinou a papai como fazer um enxerto, de goiabeira ou de laranjeira, se me não falha a moleira.

E que mais? Volta e meia chegava um ou outro Almanaque, do Biotônico Fontoura, que significava diversão para o ano todo - ou pelo menos no primeiro dia em que se o folheava.

Uma revista de moda feminina chegou a zanzar pela nossa casa também, mas a lembrança que dela me ficou foi a de uma cabeça bem tosada, suruquinha, que era

como se dizia e que na classificação da mana LaToya era a "penúltima moda em termos de corte de cabelo". E a própria mana LaToya dava também graciosamente sua contribuição ao enriquecimento de nossa bisbilhoteca: dois cadernos de diadas-mães que fizera com todo esmero e engenho e uma cartilha da infância - a que

jocosamente, ela própria, chamava de 'pinico da cagância'.

E no mais, eram algumas edições avulsas da revista 'O Sesinho' que devorávamos com a avidez de um conviva à feijoada do Chico e da Marieta.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 25/08/2013
Reeditado em 16/03/2022
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