A Biblioteca misteriosa

Como ícones encantados, os livros que se estendiam pelas prateleiras careciam de toque. Passou-se, então, a caminhar por entre aquelas fileiras e, com a palma da mão aberta, os dedos impudentes, tocou-lhes em movimento. A sujeira acumulada na tez emprestou-lhe uma ligeira sensação de estar diante de algo monumental. A biblioteca de Alexandria, pensou, seria assim.

Avistou o primeiro título, a face toda passiva diante das intempéries, com o externo não resistindo a ação do tempo, porém, com o interior preservado, leu: Ensaios, do Montaigne. Olhou a mulher mais adiante, também encantada com aquela multidão de histórias e desafios, e quis perguntar-lhe sobre a França, e também falar sobre tudo, para expressar a grandiosidade que sentia diante daquilo, mas o silêncio era tamanho imperioso que, é certo, como poderia interromper aquele clima, aquela mansidão? Na terceira fileira, no lado direito, uma multidão de olhos brandos os fitavam; pareciam dizer: o que querem? Como ousam retirar tamanha lassidão? Como sentinelas, pareciam resguardar um grande tesouro.

Numa espécie de grande vigília, os protetores do remanso espreitavam com atenção o mínimo esforço da boca; um leve abrir de lábios seria suficiente para uma rápida e efetiva ação. Era uma eterna manutenção do estado natural das coisas.

— Shiiiiii!! Ouviu-se de repente.

Um assombro, diante da censura, fez com que alguns exemplares caíssem, e a simples ação da queda fez com que a reprovação se estendesse, prorrogando o medo e a ira.

— Shiiii!

— Bando de Anim…. — tentou defender-se.

— Shiii!..

Deu meia volta, evitando que a própria respiração passasse de algo maior que um leve respiro, somente o necessário para que o ar não lhe faltasse nos pulmões, e tentou, nesse jogo estranho ao qual estavam lhe propondo, retomar sua dignidade. Tomou-os um a um os livros do chão e, na tentativa de repô-los, um exemplar maior, robusto, caiu-lhe novamente aos pés, criando uma nuvem de poeira e alertando todo recinto.

Escutou-se um tremendo barulho. Os olhos, que até então estavam calmos, apaziguadores, tornaram-se pouco a pouco tomados de um certo fervor, uma certa impaciência diante da robustez do atrevimento jamais visto por ali.

As vozes se multiplicaram. Escutava-se, agora, numa profusão medonha, várias bocas em uníssono, emitindo o mesmo som.

— Shiii!

— Shii!!

— Shii!!

Como uma avalanche que, à primeira descida do gelo, tem uma forma ainda impotente, e tão logo vai somando-se até ao ponto de ganhar gigantesca força, aquelas vozes animaram-se numa descida vertiginosa, ganhando mais e mais impacto, produzindo um tormento penetrante a quem as ouvisse.

— Shii!!

— Shii!!

Uma sensação de medo percorrera-lhe, naquele momento, a espinha. Um suor frio, de pânico, podia ser sentido. O que até então parecia ser uma brincadeira, um jogo, tomou tal forma a ponto de passar a temer a própria vida. Se deixasse aqueles intrusos entrarem na sua mente, se deixasse que toda aquela tentativa de imposição, de domínio, entrasse direto em suas ideias mais fixas de virtude, de ideais, o que poderia fazer? Como ser vivente que pensa e que, até então, só havia entrado ali para uma simples olhadela nas prateleiras, sem muitas pretensões, deixaria então tomar-se por completo?

Num último esforço, numa desesperada tentativa de fuga, pegou a mulher pelas mãos, e notou, na correria da partida, ter emprestado a mesma escuridão, a mesma mancha adquirida ao tocar o conhecimento, àquela mão incólume, profana, tão branca e limpa.

Deram os primeiros passos em direção à saída e mesmo com toda a agilidade e fluidez de seus movimentos, não conseguiam fugir das vozes, das reprimendas.

Viraram o primeiro corredor. Shiii!! O segundo. Shii!!

Numa alucinada debandada correram desesperadamente e desviavam tanto dos empecilhos à sua frente quanto das palavras; e a linguagem tão amada por eles começa a tornar-se um suplício, pois os “shiis!” acompanhava-os como homens que tentam sair de sua pátria, fugindo ao sol, sem saber que lá encontrarão o mesmo sol e, talvez, também encontrarão as mesmas angústias, pois concordamos que um homem não pode se recompor fugindo, se, na desabalada fuga, leva-se junto consigo mesmo¹.

Uma luz branca, seguida por uma porta de vidro, apresentou-se à frente deles. Com as mãos amargadas pelo pó, empurraram aquelas maçanetas enferrujadas, já no limite da gastura imprimida pelo tempo, dando adeus àquele silencioso mundo às suas costas.

Ultrapassaram o limiar da porta e acessaram um novo mundo, agora barulhento e efervescente.

¹ Uma citação indireta à Sócrates.

JS Marinho
Enviado por JS Marinho em 22/04/2024
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