Os violeiros do céu.
As violas vão faiscantantes, os dedos no ligeiramento. A valentia é provada no palavrar de cada um, assim me contaram.
A plateia se fez arena em círculo, a luz já é noite, mas se alumiaram os arredores candeeiros. A pinga se bebe, o som se escuta, o bicho se esconde.
O primeiro começa rápido, conta um causo da vez em que viu um vulto preto. O vulto, ele diz, assoprou calor de gelo no seu ouvido, um vento de morte. Disse que estava a espera do homem, e tira de dentro de seu corpo-fumaça, uma viola.
De então por um segundo
Aquilo que vi no mundo
Achei tá no outro lado
De meu chinelo virado
Vulto me entregou viola
E despareceu voado
Um fugidor de gaiola
Aí assim eu violeiro
Vou indo no arremate
Com instrumento tocador
Nunca perdi um embate
Presente do vulto alado
Dá viola já sem alma
Que toca canção sangria
Sussurros dizendo "Mate"
O segundo segura o prumo, as mãos andantes e a cabeça pensativa. Da plateia, várias palmas vivas urros. O ritmo arrocha-se, apertante. Como se tivesse vida própria, guia aquilo por um caminho novo, difícil, nunca feito.
O segundo violeiro já emenda um arremate. Uma cicatriz risca uma metade do seu rosto, como uma lâmina agora já adormecida. Ele olha num atravessar do inimigo, e com uma certeza: Só perderia se um abismo se dobrasse ali, logo embaixo dele, se sua voz morresse, e os dedos desistissem.
Sei de nenhum vulto alado
Nem de intervenção divina
Tenho minha sina forte
De andar sem medo morte
Ficando de olho na rima
Entrego meu melhor mote
Mas se precisar pelejo
Inté no escuro eu vejo
Tenho um tino afiado
Do meu passado esquecido
Da vez que um dia tentaram
Me ganhar no desafio
Um saiu bem desarmado
O outro nadou pro rio
Eu só com rosto cortado
Mas a honra ainda a mil
A plateia atônita, gira os olhos e tenta acompanhar o ritmo do cantar. Dos dois, vibra uma aura quente de brilho perene.
Os relatos dessa hora variam conflitantes, mas em uma coisa falam iguais: Os dois desfirmaram os pés do chão como se a leveza fosse lei, e caíram pra cima, ainda tocando.
As violas pareciam governar, responder sozinhas. Os violeiros a essa altura eram meros fazedores de música e verso, receptáculos.
A plateia variava em medo, descrença, empolgação, ou simplesmente um estar de pedra, de olhos mudos, arregalantes.
Até hoje repetem essa estória, engordando alguns fatos, sangrando outros, mas ninguém nunca esquece. Dizem que antes de gravitarem, os olhos dos dois ficaram numa cegueira branca de leite, pra então sumirem cada vez mais, num subir eterno.
A lenda que corre, é que hoje ainda, ao passear os olhos pelo céu é possível ver duas estrelas fogo-batalhantes, rotação, e até quem sabe, se estiver um silêncio finíssimo, dá pra ouvir os versos e o ritmo dos dois tocadores: "Cara-cortada" e "Violeiro sombra".
Não sei se é verdade, mas foi assim que me contaram.