Tocaia

Passou a mão pela longa barba negra. Um fiozinho de sangue, consequência de uma flecha que lhe passou raspando, escorria desde sua têmpora até o pescoço. Estavam somente ele e Manuel, um mateiro. Os demais soldados, os escravos e as bestas, esperavam nas canoas, no rio. “Capitão, acha mesmo que o índio aparece?”. “Aparece”. Capitão Bueno sabia disso. Bastava que esperassem em silêncio, e o índio, achando-se em segurança, sairia da toca. Eles são assim, imprudentes. No dia anterior eram como trinta, que responderam a investida com flechadas, a tropa comandada pelo Capitão esmagou-os, e somente aquele indiozinho conseguira escapar. Para escravo não servia. Os Arraé eram rebeldes demais. Capitão não estava interessado na micharia que o fazendeiro lhe pagaria por aquele espécime. Queria saber onde estava a Serra dos Martírios, não estava longe, quando tinha somente doze anos, com seu pai – Capitão Bueno, o Velho – conhecera aquele maravilhoso lugar, mas não conseguia lembrar-se exatamente onde ficava. Capitão Almeida passava os dedos engordurados pelo volumoso bigode. O cabo estava na esquina fumando, eles esperavam no carro, enquanto comiam amendoins. Contemplava a noite mal iluminada, um bêbado em algum lugar cantava um samba <<a vida é sofrida para todos os irmãos...>>. “Quando o moleque sair, o cabo agarra ele, e a gente encosta com o carro”, “Sim, Capitão”, respondia seu companheiro, que fumava um cigarro. << o meu amor foi embora, o vento levou...>> . “Porra, e depois que a gente pegar esse moleque, a gente dá um cala-boca nesse bêbado do caralho!”, “sim, capitão”. O mateiro carregava o arcabuz com um pedregulho. Usemos a pistola, disse o Capitão, dando um tapa em seu estupil, preciso dele ainda vivo o suficiente para falar da Serra dos Martírios. A Serra dos Martírios, tinha-a bem gravada em sua memória. Era uma terra com tanto ouro que se poderia coletá-lo com as mãos. Na noite anterior haviam baixado no meio da assembleia, foi uma correria dos diabos, mas Capitão e sua equipe capturaram todos os terroristas, exceto por aquele moleque, que, como se fosse um macaco, subiu pelos telhados e conseguiu fugir. Não foi difícil saber quem era, onde morava, o nome da namorada, qual curso fazia na universidade. A polícia tinha suas técnicas para tirar informações até do mais valente terrorista. O moleque já era conhecido, quando ia para escola, mantinha uma pequena bandeira do Brasil pegada na mochila, “ caralho, tremendo desrespeito com o símbolo pátrio, capitão”, dizia o cabo. Capitão acreditava que o moleque era um dos cabeças do grupo, e assim que pusessem as mãos nele, poderiam obter informações de grande importância. “A guerra se ganha assim, cabo, de pouquinho em pouquinho” , dizia o Capitão, que agora acendia um cigarro, tentava ignorar o bêbado que continuava com a cantoria << o senhor sabe….a vida é só sofrimento, e ela se foi...para nunca mais voltar>> . Lá estava o índio, lá estava o moleque. O índio tinha o corpo depilado, “Veja que criatura” - dizia Capitão, “ o seu pênis é minúsculo, por isso as índias atiram-se sobre nós como moscas sobre o mel, deixemos que se aproxime” , o moleque de tão novo, não tinha mais que uns poucos fiapos de barba na cara, e não foi difícil para que o cabo o dominasse. Capitão e o cabo observavam-no como a serpente observa o rato antes do ataque final, e o Capitão chegava com o carro, o cabo saía e metia o índio que foi, por fim, dominado pelo Capitão, que com seus braços fortes, apertou-lhe pelo pescoço e o colocou no carro, iam até o distrito policial, chegando lá o levariam ao porão, e o índio entregaria a todos, não esconderia nada. Fale logo onde está a Serra dos Martírios, fale logo onde se reúnem os terroristas, deu-lhe choque nos genitais minúsculos, “ele tem pinta de boiola” , dizia o Capitão, “ mete-lhe aço no rabo” e o mateiro fazia o que o capitão mandava. Em algum lugar distante, o bêbado, com voz chorosa, cantava os últimos versos do samba, << lá na terra do Haiti, já raiou a liberdade, a liberdade só falta aqui...>>.

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Esteban Donato Ardanuy
Enviado por Esteban Donato Ardanuy em 03/01/2020
Reeditado em 05/04/2020
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