A Taça ou Lulu Do Segredo Proibido

O copo quadrado de vidro já não servia. Precisava de mais!

Lembrou-se do armário onde os pais guardavam as taças de cristal, eram tantas que uma á mais ou a menos passaria despercebida. Esticou-se, fracassou e pegou a cadeira, a ultima da mesa, que sempre estava vazia e quando não havia jantares ou visitas tinha seu papel trocado com o da prateleira onde ficavam os panos de prato.

Lulu pegou o esquecível móvel e o apoiou contra o armário. Tremeu. Vai que a mãe ou a avó entravam de surpresa na cozinha e a flagrava naquela estranha pose? "Dane-se", pensou. Elas também tinham seus segredos. Abriu o armário. Diante da nem-tão-garota-nem-tão-mulher, toda a sorte de taças, recipientes para vinho, champanhe, uísque e outros esquece-problemas. Procurou a que precisava e lá a achou, escondida entre tantas demais. Pegou-a. Inspecionou: longa, fina, afunilada. Fechou as portas do armário e desceu, escondendo seu pequeno furto por dentro do robe rosa enquanto punha a cadeira de volta ao seu lugar.

Precisava de um teste, nada adiantaria preparar-se para descobrir na hora que o mais importante era defeituoso, não serviria em nada para a missão na qual Lulu lhe confiara.

Foi para seu quarto, fechou a porta, apagou a luz e encostou a taça na parede. Bingo! Do outro lado, o som do programa de variedades sintonizado na TV da avó. Funciona! Inventou alguma desculpa e foi para os fundos da casa. Todas as janelas fechadas, nenhum risco. Pegou um banco, se acomodou e fechou os olhos, os ouvidos pressionados contra o cristal frio. Não tardou á separar o barulho da rua e dos carros que passavam dos seus velhos conhecidos ruídos: brocas, alguns martelos, a mangueira, uma ou outra reclamação... A paciente da vez era mulher, tinha quebrado o implante. Ocorrência normal, se não tivesse ocorrido á três semanas atrás. Dr. Rúbio teria trabalho. Uma pequena bronca. Limpeza. Todos os sons amados por Lulu.

Aqui deve-se uma observação: Lulu, ou melhor, Maria Luisa (poucos á chamavam pelo nome) nutria sentimento algum por seu vizinho. O maior contato que tinha, e desejava, eram as vezes em que o encontrava na calçada, ela indo para a faculdade, ele voltando para o turno da noite. Mas a escuta --essa sim!- era o princípio da existência desta jovem. Tinha poucos interesses, amigos menos ainda. Porém fervia vida, vida e vontade, só não sabia do quê. Um dia lhe bateu a curiosidade de como deveria ser o cotidiano do vizinho-dentista. Á anos não ia á um, tinha como ultima lembrança estar na sala de espera com seu pai, lendo alguma revista, enquanto ouvia a música de abertura da então novela atual.

Hoje ela ainda ouvia a música da novela, pelo copo. Pela TV do outro. "Se quisessem tirar-me os sentidos, deixem-me com a audição, ou morro!" repetia para si mesma. Com o tempo, abandonou de vez os outros passatempos e afazeres, á ponto de faltar ás aulas, para dedicar-se á seu áudio-voyerismo descabido e desenfreado. Decorou o nome de cada um dos pacientes, de todos os aparelhos e o som emitido por cada um. Pelos sons descobria qual o procedimento que estava sendo feito. Poderia até mudar seu curso para odontologia, se não tivesse trancado a faculdade dois meses atrás. Os pais nada falaram, nem tomaram conhecimento. Mudaram-se á quinze dias. Lulu não quis ir, como assim perder sua única diversão? Insistiram, insistiram, e desistiram. Ela já estava com vinte e três anos. Ficou só.

As plantas invadiram todo o quintal, a água da torneira cheirava mais que o Tietê em tempos ruins. Esquecia de comer, lembrando quando os ruídos do estômago superavam os do copo. Preparava algo rápido, geralmente hortaliças do jardim, pois não tinha dinheiro para o mercado, não trabalhava, e voltava para seu lugar, para a taça, á cada dia mais brilhante e transparente.

Naquele manhã ouviu apenas um barulho: um homem caindo. Minto, houve outros, respirações ofegantes que logo cessaram, algum passos desesperados, ligações, sirenes de ambulância e polícia. Depois o silêncio. Lulu levantou-se, guardou a taça na gaveta, seu antigo esconderijo, e ligou para os pais. Depois caiu.

Desidratação, anemia, várias foram as causas da morte. Duas semanas após o enterro, voltaram á casa. Cimentado o quintal, foi a vez de guardar os pertences e levá-los á alguma venda. Depois, fazer igual a casa ao lado, agora ostentando uma enorme placa de ALUGA-SE. O pai abriu a gaveta, estranhou a presença daquele objeto, á tantos desaparecido. Mostrou-o á esposa e á sogra. Ambos fizeram um sinal positivo, e o meteram na caixa reservada para o que seria jogado fora. Sobre a mente deles, várias hipóteses para o uso daquela taça. Nenhuma era a correta.