Repentista

Quando eu viajava para Ribeirão Preto, com os trens da Fepasa, ficava eu hospedado em um hotel, muito bom e simples, onde todos se sentiam em família. Havia lá um senhor nordestino que praticamente morava no hotel Senador, este era o nome da casa.

Esse ilustre personagem devia andar pela casa dos sessenta anos, 1,60 de altura, pele amorenada pelo sol. Muito prosa, era sempre um convite para uma boa conversa. Dizia ele ter levado uma vida movimentada: fora tropeiro, garimpeiro, treinador de cachorro perdigueiro, fogueteiro em Caruaru, pirangueiro no São Francisco, delegado em Pinhão da Serra, capanga de Rubião Feitosa, um coronel muito famoso nas barrancas do Araguaia. E depois de tudo isto ainda era reformado como capitão, mas não sei de onde.

Ele dizia que amava o Estado de São Paulo, tinha tudo de bom, mas do que ele achava falta era dos repentistas da sua terra, que eu também nunca soube qual seria. Continuava ele, em cada esquina tinha um poeta, era só dar o motivo e o repentista enchia o ar com uma bela poesia, feita na hora bem trovada e ritmada, coisa que ele nunca vira um paulista fazer.

Depois de ouvir muitas coisas do Sr Elesbão Arruda Monteiro, este era o seu nome, um dia mostrei a ele que paulista também sabe fazer versos. Baseados nas suas narrativas, um dia fiz umas poesias, inclusive de seu ídolo: Capitão Virgulino, ou simplesmente Lampião:

Meu caro senhor Monteiro

Que já foi delegado, tropeiro,

Diz que aqui poeta, não tem não

Digo-lhe com sinceridade

Baseado na pura verdade

Aqui tem, melhor que os do seu sertão

Vós que às vezes é pescador outras capitão

Não é preciso que insista

Conte um caso bem contado

Bem pertinho de um paulista

E vai ver brotar o repentista

Que tem aqui neste Estado

E lembrando de uma passagem que o Sr. Elesbão havia contado, entre a polícia e cangaceiros, onde muita gente tinha morrido, fiz esta simples poesia:

Certa vez em Pinhão da Serra

Teve um encontro danado

Que o povo todo alarmado

Logo chamou de guerra

Tanto sangue que rolou

Que o sertão se apavorou

Com tanta gente que morria

Que urubu indiferente

Com luxo até escolhia

E com calma, só comia

De capitão a tenente

Mas o nosso bom capitão Elesbão não gostou muito da minha poesia e ainda gostou menos da poesia a respeito de seu ídolo do Nordeste: Virgulino Ferreira, que nas horas vagas era o terrível lampião. Ele havia me contado que o seu herói sofria de uma forte dor de dente e apelou para rezas e benzimentos, mas nada adiantava. Não suportando mais a dor, mandou a jagunçada cercar Limoeiro, pequena vila onde vivia o velho Januário, que curava de tudo e também sabia extrair dentes, pois quando ainda mocinho fora aprendiz do Dr. Venâncio, também um dentista por vocação, devido a ter cursado apenas 6 meses um curso de enfermagem em Belém do Pará. Depois de verificar se os seus homens estavam alertas, Lampião rumou para a casa do Sr. Januário. Então, baseado na narrativa do capitão Elesbão, fiz esta poesia:

Lampião e o dente

I

Conheci um cabra valente

Que até em moço foi bão

Por causa dumas besteiras

Virou o feroz lampião

II

Não tinha medo de nada

Nem de chuva com trovão

Ele ria da tempestade

Debochava e fazia caçoada

De tudo que Deus mandava

Mas tremeu de verdade

Só de ver um boticão

III

Certa vez uma dor enjoada

Era irritante e danada

Aborrecia o valente capitão

Era um dente grande do fundo

Parecia coisa do outro mundo

E não tinha jeito, não

IV

Então chamou Mané do Meio

Que era um caboclo esperto

Mas como o capeta era feio

E inté se dizia, que do inferno teve perto

Mas era a única solução

Curava tudo, o malvado

Picada de cobra, coceira de urtigão

Espinhada de ouriço, até corte de facão

V

Então chegou de pronto

Ao capitão, de dor, meio tonto

Disse, já achei a solução

Limpar o buraco bem certo

Com bastante algodão

Ponha um pouco de pólvora

Mas tem de ser da bem boa

Toca fogo e sai de perto

É só pedaço que avoa

VI

Lampião ficou danado

Com tamanha brincadeira

Venha cá cabra safado,

Que eu te mostro a sua asneira

Então um castigo foi dado

Vai ficar três dias amarrado

No tronco da grande figueira

VII

Desesperado de dor

Tomou uma decisão

Seja lá o que for

Vou para Limoeiro, enfrentar o boticão

Sentou na cadeira do boticário

Que era o velho Sebastião Januário

E foi dizendo de estalo:

VIII

Lá fora eu mato, arrebento

Roubo, estrago e não me abalo

Tenho o sangue frio e pouco coração

Lá fora sou muito homem

Aqui dentro não sou não

Fazendo assim, provei ao prezado Sr. Elesbão Arruda Monteiro, que paulista também é um bom repentista.

Laércio
Enviado por Laércio em 25/01/2008
Código do texto: T832616