Linguiça de Rolo

Um dia destes, pedi um comercial num restaurante popular da cidade. Quando chegou a comida eu estremeci. Fui tomado por uma súbita lembrança da minha vida de garoto adolescente. Corei-me então, como se tivesse submerso na desventura daquele dia.

Chegando em casa, mergulhei no Google em busca de algum vestígio daquele insólito dia. Depois de horas de pesquisas e navegar em pistas falsas ou já perdidas no tempo, um número de telefone. Arrisquei:

- Alô, é da casa do professor Teotônio?

- Sim. Quem gostaria de falar com ele?

- É um ex-aluno. Ele pode atender?

Passados alguns minutos, uma voz trêmula e fraca me interpelou do outro lado,

- Pois não, quem fala?

- Professor, seria muita pretensão eu querer que se recordasse de mim. Fui seu aluno há 50 anos, lá no Ginásio de Sobradinho. Hoje, enquanto almoçava, lembrei-me de um fato ocorrido na sua casa. Não sei se vais recordar, mas me lembro dele todas as vezes que vejo um rolo de linguiça ou um tapete branco.

Eu tinha doze anos, fazia a primeira série ginasial onde você dava aulas de português. Era 1971. O Senhor organizou e geriu um concurso de conjugação de verbos regulares entre as oito turmas de primeira série do Ginásio, no qual eu fui um dos seis vencedores.

Até aí nada demais, mas tivemos como premiação do mérito, dentre outras coisas um almoço na sua residência, tendo como prato principal a torta de sururu das Alagoas, sua terra Natal.

Dona Tânia, sua esposa, preparou uma linda e farta mesa, com um carinho de mãe a receber filhos.

Senti-me impróprio, como garoto pobre de periferia, nunca havia usado talheres, exceto garfo ou colher. Pedi socorro;

- Por favor, ponham o meu prato.

- Nada disso, você bradou do outro lado da mesa, tentando dar coragem a quem jazia esbranquiçado de pavor.

Pequei então a faca e fui cortar um pedaço do rolo de linguiça frita que estava em uma travessa de vidro redonda.

Foi aí que a tragédia aconteceu. O rolo de linguiça voou da travessa e foi parar no tapete branco de veludo que cobria o piso da sala. Entre a vergonha e o choro, não me lembro dos fatos que seguiram ao desastre, mas todas às vezes que vejo um tapete branco ou um rolo de linguiça, tremo e peço a Deus uma oportunidade de reparar o vexame daquele dia. Não sei se sua esposa está viva ainda, mas peço a ela o perdão pelo incidente.

Hoje, já estou me aposentando como engenheiro, matemático e pesquisador, mas serei sempre grato a acolhida honrosa que destes a garotos tão sofridos, sem esperar nada em troca.

A conversa foi interrompida entre soluços e lágrimas de um velho moribundo.

- Ainda ontem eu me questionava, se foi vã a minha existência. Foi Deus que fez você me achar e dar este lindo depoimento. Já posso morrer em paz, você mostrou-me que minha existência foi de alguma forma útil e bela.

Quanto a Tânia, transmitirei a ela as suas escusas, ela vai gostar. Porém, saiba que nem eu me recordo do evento e com certeza ela também o esqueceu na mesma semana.

Samuel da Mata

Samuel da Mata
Enviado por Samuel da Mata em 09/02/2023
Reeditado em 11/05/2023
Código do texto: T7715404
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