Experienciações

“Não consigo dormir, tenho uma mulher atravessada em entre minhas pálpebras”, escreveu certa vez, Galeano. Última madrugada, tal qual Galeano, não pude tornar ao sono. Tinha um poeta atravessado em meu pensamento. O cheiro da palavra acendendo vontades. Escreve!

Obedeci…

Desperto às 03:30 com visita ilustre. Vem primeiro à memória um desejo antigo, desses que a gente carrega no bolso da alma para o sempre, e quando todas as chances de alcance se vão, fica inventando devaneios para dar de comer à esperança. Eu sempre sonhei esse encontro. Maneco se foi. O sonho permaneceu guardado. Pintei suas feições na varanda de casa e esperei, como criança que deposita o sapato à janela e briga com o sono para vislumbrar o momento mágico. Lembro-me bem sua partida. Quinta-feira. 13 de um novembro em que manhã não viu graça em abrir as pernas ao sol. Em que apagaram os anseios do menino, que dali a uma semana traria em exposição, brinquedos feitos da poesia manoelesca. “Se foi professora! Se foi nosso velhinho!” Foi a frase entre um suspiro e a lágrima, o boné atirado à mesa da sala de recursos da escola Carlos Henrique Schrader. E a professora, tão mais aluna naquele momento, tentando aprender como foi que o tempo desamarrou do poste, passou e levou com ele “nosso velhinho”.

É madrugada e eu sinto o cheiro da poesia brotando da boca de Maneco. Camisa cinza, de listras finas em cinza de tom mais escuro, boina enterrada na cabeça, calça caqui. Senta num lance de escada e a gente em volta, no chão, num ritual todo único. Levanto-me e abraço o quanto posso aquele corpinho pequeno e sensível, envelhecido e sagrado à poesia, como a casca de cigarra. Sinto seu cheiro de árvore orvalhada. Faço conexão com versos meus de tempos atrás “folha deitada ao sol/a alma lavada na chuva” Dou-me ao luxo de achar parecenças nos versos que são nossos. Feito fossem mudinhas manoelescas crescendo em meu jardim poemal. Quero ficar para sempre no encontro. Agarro-me a cada fiapo de detalhe. Quero guardá-lo no abraço, infinito. E o povo impaciente. Conto-lhe da obra completa, presente do amigo Ciro, dos outros tantos que fui comprando aqui e ali, outros que fui presenteada e de como veio parar em minhas mãos uma edição de 1991 de Concerto a Céu Aberto Para Solos de Ave. A poesia caça jeito mesmo, filha - ele responde. Arrisco declamar para ele As Bênçãos. Ou para mim mesma? “Eu não tenho a anatomia de uma garça para receber em mim os perfumes do azul/ mas eu recebo/é uma benção…” Ele absorve, como não houvesse saído dele mesmo essa luminescência poética. Tudo que vem dele é poesia. Interrompe a fala para atender uma criança entre a gente e alimentar a criança da gente. Entrega-lhe uma pipa para que vá soltar no pátio. A emoção do menino está na pipa - ele diz - é lá que está sua poesia. Penso que ele próprio está na pipa também. Lembro-me a fala do menino: Ele se foi, professora. Se foi nosso velhinho. Olho para ele ali, sentado na escada e tenho certeza que sempre esteve por aqui, seja como ave, árvore, rã, pedra…Assim é que, olhando seu monumento na Afonso Pena, lembro sempre o menino do mato que viu na cidade grande o homem empunhando uma faca. Ele não tinha conhecimento de cidade grande para saber sobre heróis da pátria. Hoje, sou esse menino. A estátua de bronze, não oferecesse colo ao andarilho cansado e com frio, não desse de sentar ao faminto com sua marmita, não aparecesse de máscara dia desses, lembrando às pessoas a importância do cuidado, seria sucata e só. O nosso velhinho está aqui a dois passos de mim. Sentado com sua camisa listrada. E tem livros para venda e tem CDs com poesia falada, e tem poema em papel solto. Tudo para venda.. Seria um maneco se reinventando em tempos de pandemia? Preciso ir ao banheiro no pátio. Estive castigando a bexiga até não mais poder. Sinto que ao sair, o lugar, tão perto dele, logo será ocupado. Não quero ir. Luto para esquecer a vontade, mas ela vem, incontrolável. Apresso-me em levantar. Estou acordando. Tento não mover as pálpebras, não me virar na cama. Não! Tento agarrar o último fio de ligação com o sonho. Tudo vai se apagando. Já nenhuma plateia. Só eu e ele. As pernas sumiram, a camisa, os braços...o rosto apagando atrás do branco dos cabelos. Diz-me, ainda que estou em período fértil à palavra, que o texto virá faceiro, batizado no amanhecer, e some.

São 4:20 e quero dormir. Quem sabe sonhar novamente. São 4:20 e vejo através da janela um ponto brilhante. Pegou carona nalguma estrela , dessas que cruzam o céu e descem, só para atender um pedido da gente? São 4:30. Deitei meu sonho em papel, palavra a palavra, para que não fugissem os detalhes. O ponto brilhante no céu, se pondo onde o sol vai nascer. Um planeta, dizem. Eles… eu não! Um convite a olhar novamente o céu. Faz tanto tempo… Tem a Covid, e estou com medo. Andei esquecendo o céu. Ah, Manoel!