Ácido rancor

A boba enlouqueceu. Perdeu a fé; perdeu o juízo; perdeu as alianças no dia de casar-se com a sua única chance.

Ela não quis voltar atrás e nem mesmo fechar os olhos na hora do horripilante sorriso que vinha da escuridão no peito.

Na pista de concreto que ligava seu chão ao resto do mundo, lamentava o momento da concepção. O concreto foi enfiado em sua boca e forçado a descer pela garganta, rasgando as paredes e deixando buracos tão grandes quanto seu ódio.

À noite, a fila de vultos invadia o quarto e ela sentia-se provando uma esquizofrenia à vapor. Os olhos não viam mais nada que não fosse vingança. Aos que riram do pouco que podia dar, serras elétricas e cordas nas árvores. Para si mesma, cama! Nunca mais queria levantar. Poderia usar o mesmo concreto e fixar seus pés na bondade alheia. O peso da bondade exagerada tirava tanto o sono, que as olheiras pareciam bacias de lama e pólvora.

Ela não precisava de mais ninguém. Ninguém deveria implorar mais nada. Não havia mais vida por dentro. Os pulmões calculavam o ar necessário para suportar as próximas horas. Sentimentos que existiram na infância foram descobertos e não passavam de ilusão e nuvens. Nuvens com formatos de armas. Todas apontadas para seu rosto.

Ela zombava.

Congelando, se perdeu na agonia de existir e não fazer parte de nada. Não podia realizar os sonhos, pois estes não tinham mais graça. A graça de sonhar estava na inocência de crer em liberdade. Liberdade, pois, nunca existiu. Mas ela acreditou um dia, durante o café que tomava enquanto ria da vida dos prisioneiros. O café caiu em sua roupa branca e ardeu na pele sem sol. O café escorreu tão lento pelo meio dos seios que se era possível derreter de fora para dentro como ácido.

Nunca mais foi possível encontrá-la sorrindo e chamando os amigos para beber. Nunca mais quis ouvir músicas que falavam sobre o mar e os amores. Nunca mais acendeu nenhuma das luzes. A boba perdeu o medo do escuro e se atirou de vez nas trevas. Tinha encontrado a quem pertencer. Pela primeira vez, sentiu como se nunca mais precisasse sair de vez. Ela nunca mais foi embora.

Acenderam as velas! Alguns atearam fogo. Outros se atiraram na terra molhada. Muitos brindaram de madrugada. Aqueles, lamberam as próprias lágrimas. Depois foram embora. E o silêncio que ficou depois da dúvida, ficou cada vez mais alto. Eles sabiam que ela não iria em vão.

Quando a levaram, foi como o ácido.

O café.

Kamilla Fialho e a Essência Das Descobertas
Enviado por Kamilla Fialho e a Essência Das Descobertas em 04/04/2020
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