MIL E UMA HISTÓRIAS DA MINHA INFÂNCIA

FRAGMENTOS DO TEMPO – INFÂNCIA

Passei uma infância muito movimentada, nela adquiri a base para a formação do meu caráter, e o sólido alicerce para enfrentar esse mundo, que mesmo sendo um legado deixado por Deus para toda a humanidade, com provisão suficiente para suprir as necessidades de todo ser vivente, devido a ação devastadora do homem, aos poucos vai sendo destruído pela criatura que afastada do seu criador, se deixa ser movida pela ganância, desamor, preconceitos e o fascínio pelo poder. E mais, visando tão somente obter vantagens ilícitas, com suas tramas inescrupulosas, armadilhas e ciladas, enseja a destruição do meio ambiente e do seu semelhante.

Mãezinha não era de muitos afagos, eu era sua boneca, se tivesse bem vestida, alimentada e sadia, estava tudo bem. Lembro-me bem de dois vestidinhos de tafetá que ela mandara bordar pra mim, sendo um da cor rosa, e o outro vermelho, ambos tinham a saia larga franzida, forrada e bem armada. Como gostava de vesti-los! Pois depois de pronta, parecia uma princesa de tão elegante, só ficava faltando os cachinhos, que por mais que ela tentasse não conseguia mantê-los.

Minha mãe era muito rigorosa, ainda bem que naquela época nem se falava em estatuto da criança e do adolescente para refrear os pais ou responsáveis adeptos da “vara”. Notadamente por que nenhum desses castigos chegou a me prejudicar, muito pelo contrário, aproveitei bem os seus ensinamentos e correções.

Fora sua rigidez, era por natureza um amor de pessoa, adorava ouví-la contar suas experiências, admirava sua garra, e a sua bela voz, cantava músicas da sua época, as quais até hoje aprecio. Apesar de pouquíssima instrução acadêmica, era bastante sábia e também muito caridosa, me ensinou a respeitar os mais velhos, e não admitia que aceitasse qualquer objeto de estranhos. Se por acaso me visse com algum, ia logo saber a origem.

Determinada ocasião, mãezinha me levou a visitar a casa de uma amiga, em lá chegando, vi jogado ao chão, um pequeno apito de plástico, bem colorido, no formato de passarinho e para usá-lo tinha que por água, tão bonito que prontamente o apanhei e guardei, Quando estávamos retornando, na metade do caminho mostrei-lhe o meu achado, nunca esquecerei sua reação, o trauma foi tão grande que nunca mais quis repetir a façanha.

A minha sorte é que estávamos na rua, rodeadas de transeuntes, mas mesmo assim ela incontinente retornou comigo, e fomos devolver aquele insignificante brinquedo, que vergonha! Não haveria castigo pior que o constrangimento que passei, sem contar com a prestação de contas ao chegar a nossa casa.

Ao contrário de Mãezinha, Paizinho era mais expansivo, embora muito moralista e conservador, apenas com um olhar severo intimidava qualquer pessoa. Foi um grande conselheiro, muito benquista, tinha sempre um sorriso para todos, normalmente dotado de muita calma, que chegava a irritar minha mãe, porém ela terminava sempre desistindo de tirá-lo do sério. Aprendi com ele a boa convivência com as pessoas, a primar pela verdade e como disciplinar meus filhos nesse padrão de conduta.

Em minha infância fui muito solitária, sem amigos ou irmãos por perto, ao lado de adultos que, como era de praxe, além de nada me informar, nem sequer me incluíam em suas conversas. Passeios nem pensar, Paizinho era muito ocupado e dizia que isso era tarefa de Mãezinha, que por sua vez não gostava de sair, imaginem que nem as homenagens do dia das mães ela comparecia.

Alem de não ir, não deixava que eu fosse com outras pessoas, salvo com uma vizinha de frente à minha casa, alma caridosa que se penalizava com meu enclausuramento, tinha três filhos, um menino e duas meninas, que se tornaram amigos preciosos, tanto é que nunca perdemos o contato. Verdadeiramente essa família faz parte de minha história.

Dessa forma, tinha como opções de companhia apenas os animais domésticos da minha residência: cachorro; gato; e aves, (pássaros, patos e galinhas) lembro-me ainda da curiquinha, uma porquinha simpática que por não fazer regime logo foi sacrificada para saciar a fome de alguns, menos a minha.

Minha residência parecia um sítio, era um ambiente espaçoso, e muito arborizado. Costumava subir nas árvores para colher e saborear as frutas fresquinhas, goiaba, caju, siriguela dentre outras de mais difícil acesso como é o caso do limão, que com uma pitadinha de sal ficava uma delícia.

Havia também balanços, e determinadas árvores em que sempre me acomodava para estudar ou cantar. Era fã de Jerry Adrianny, Roberto Carlos, e outros mais da Jovem guarda, aprendia as músicas ouvindo-as pelo rádio, principalmente quando mãezinha saia de casa, aí sim, eu pintava o sete, usava suas pinturas, sapatos roupas, enfim, chegava a remexer em tudo, sempre trancada para evitar qualquer flagra.

Em relação a iguarias proibidas, o depósito do açúcar era meu favorito, recebia muita repreensão até o dia em que aprendi que se agitasse o pote não deixaria pistas que usara a colher, e assim, ia me safando. Porém uma vez me dei mal em minhas travessuras, fui tirar as sobrancelhas com uma navalha de meu pai fazer a barba, e me cortei, foi um sacrifício extremo para estancar o sangue, além de ficar muito assustada, essa peripécia valeu-me uma imensa reprimenda.

Quanto às brincadeiras com as bonecas era por pouco tempo, o bastante para trocar suas roupas e pô-las para dormir na casinha edificada no quintal, com papelão, paus e palhas de bananeiras, obviamente com a ajuda de meu pai, que fincava bem as estacas no chão, evitando assim, o desmoronamento que ocorria quando me dispunha a construí-la sozinha. Todavia, chorei muito quando minha avó, sem querer, incendiou minha casinha destruindo tudo, inclusive o que tinha lá dentro.

Na realidade não me conformava com a passividade daquelas bonecas. Certa vez, já na preadolescência ganhei uma de tamanho médio, que chorava quando a viravam, mas não me contentei plenamente, choro sem sentimento não valia, por isso preferia conversar com os animais e me divertir com a expressão deles, até parece que me entendiam, dando sinal de contentamento ou de medo, dependendo da minha ação.

Apreciava bastante a companhia do cachorro, gostava de vê-lo balançar o rabo sem parar, movimentar as orelhas, levantar a patinha, correr para ir buscar o que eu arremessava longe, enfim, me divertia bastante com ele, ao contrário do gato, que passava bom tempo dormindo, e quando me dava atenção, só me respondia “não”, era todo arredio. Corria desesperado quando procurava pegá-lo no colo, certamente temendo que eu repetisse alguma das brincadeiras que ele não gostava.

Divertia-me bastante com os periquitos barulhentos que dançavam com as penas arrepiadas ao som de um lá, lá, lá, e palmas, chamavam meu nome pela metade e outros mais. Contudo, bom mesmo era brincar com as franguinhas que amansava logo que elas nasciam. Isso quando a galinha mãe permitia, pois eram bem valentes. Já em relação aos frangos, tinha que ficar atenta, pois quando entravam em duelos entre si, se não os separasse, lutariam até a morte.

Relembro ainda alguns detalhes marcantes, como o pânico que eu tinha de escuro; o medo de almas; as idas à praia ao raiar do sol, em companhia de meu pai, por ocasião de uma enfermidade que contraí conhecida por coqueluche; a sexta feira santa, em que minha mãe ficava “bem boazinha” e não brigava comigo; da ida ao cinema assistir Paixão de Cristo; da coroação de Maria, pois sempre sonhei ser “um anjinho”.

Havia também os Reisados, as festividades juninas, época das quadrilhas e das fogueiras, forró pé de serra, adivinhações; o “passar fogo” que selava um vinculo entre comadres, afilhadas e madrinhas. A maior fogueira de São Pedro no bairro era nossa, comemorando também o aniversário de mãezinha, com direito a aluá, bolo de milho; pé de moleque, etc. Sem esquecer ainda, das lindas histórias de “trancoso” e dos cordéis emocionantes, que se lia no terreiro da fazenda, no interior onde ia passar férias; banhos nos açudes, e muita comida gostosa.

Enfim, chegara a vez de estudar, nova realidade, contato com outras crianças, brincadeiras e corre, corre, pular corda, amarelinha, esconde, esconde, e principalmente algo que desde cedo aprendi a amar: - Os livros. Lembro-me ainda o primeiro que li: “Os Cisnes selvagens”, emprestado por uma colega de classe, que os pegava escondido do seu irmão, faziam parte de uma coleção maravilhosa, que em pouco tempo consegui ler todos. A partir de então surgiu a minha vocação para escrever, e pensei, vou ser jornalista para ser escritora, mas o sonho não se concretizou, porém isso não impediu que pusesse em prática o meu desejo de escrever. Sempre amei literatura, mas não tinha preconceitos, salvo os livros didáticos, lia tudo, cawboy, cordel, revistas, gibi, etc.,

Com o passar do tempo fui aprimorando meu gosto, passei a me interessar por romances, - Que maravilha! Lia avidamente os livros disponíveis da biblioteca da escola, no intervalo para o lanche, tomava emprestado e rapidamente devolvia, mesmo sob os protestos de Mãezinha, que alegava o meu desinteresse pelas demais atividades. Passei então a escolher os mais volumosos, visando obter mais emoções, indubitavelmente até hoje não consegui sensação melhor e mais edificante do que mergulhar em uma boa história, viajar no tempo, no espaço, e nas asas da imaginação!

Mira Maia

16/06/2014