Crônicas de um maconheiro III - Dona morte

E todos os sonhos e as promessas não cumpridas? E todos os planos que foram feitos e re-feitos? E todas as noites perdidas, refletindo, tentando entender, tentando esmiuçar todo e cada detalhe. Todo e cada momento. Sem dormir. Imerso no mar de pensamentos. Profundo. Dentro dum emaranhado de sensações e emoções rasas. Ilusões profundas. Alucinações intensas. Suores frios. Alienações noturnas. Obsessões compulsivas. Impulsivas. Enquanto a vida passava como água correndo entre os dedos. E se perguntava por que dava anto murro em ponta de faca. Por que tinha um "jeito", de bater, que fazia com que o corte não fosse tão profundo e que dobrasse pouco a ponta faca. "Tem que dar um golpe seco". E assim vivia a vida. Dobrando as facas com um murro, aplicando um golpe seco. E os furos na mão nunca cicatrizavam. Decidiu não dormir mais, se drogar, beber, assistir todo dia raiar e a noite escura clarear, de frente de seus olhos castanhos. Se achava jovem. Nunca reclamou disso. Mas sempre reclamava disso. Era o que fazia. Sempre. E nunca. Se achava imaturo. Mas olhava as entradas na testa e a queda de cabelos e se preocupava. Se achava velho. E se preocupava. E refletia. Não fazia a barba. Nem cortava os cachos. "Sou um leão". Parecia. Com uma mistura de sem teto. Um dia iria acordar, como quem acorda de um sonho, e iria viver tudo aquilo que tinha imaginado e fantasiado. Iria cumprir todas as promessas quebradas. E fazer todos os planos re-feitos. Como quem dorme e vive sonhando. Ou acorda e sonha vivendo. "Aos domingos somos todos anjos". E não temos mais compromisso com nosso nome, ou alcunha. Somos todos anjos e voamos alto. Sonhando. Alto. Sonhamos. Uma vida que não tem compromisso. Uma vida que nós escolhemos viver. E nem precisamos refletir. Apenas damos a mãos e seguimos em frente. Sem passado. Nem tempo. Nem relógio. Aos domingos. Somo todos anjos. Aos domingos. E nada mais importa. Mesmo que só exista memória agora, nada mais importa. Por que todo fim é um começo. E nunca é tarde. Nunca se é jovem, ou velho demais. Para nada. Para tudo. Sejamos algo a mais do que nós mesmos. Esquece o que tu foi, ou o que tu é. Agora não sou mais ninguém. Eu não existo. Eu só existo. Só. Calado. Pensativo. Aprendeu a tomar café mas ainda adoça demais. Bem amargo e bem doce. Era assim na vida. Deixou de parecer. Para ser. Agora só é. Ou parece ser. É ser. Mas não sabe bem. Confuso. Ainda. Bem. Mas as vezes mal. Confuso sempre. Isso talvez seja ser, mas até deixar de ser o que é, não sabe bem. Ou até não deixar de ser. Alguém. Que não é nenhum outro. Mas tu. Único. "Quase um cara". Dando murro em ponta de faca com um "jeitinho" que faça dobrar e não arregaçar toda mão. Aprendeu isso com a vida. Ou aprendeu a viver assim. "Chega de sonhar. Chega de promessas." De repente acorde. Ou talvez, volte a dormir. Não sabe bem. Confuso como sempre, não sabe bem, se a vida é o sonho, ou o sonho é a vida. Decidiu voltar a dormir. Ou a se alienar. Iludir. Alucinar. Tinha o companheiro baseado e a companheira esquizofrenia. Sempre juntos naquele triangulo amoroso. Vicioso. Amoroso. Caótico. Doce. Amargo. Aprendeu a fumar mas não sabia tragar. Tossia, ficava zonzo. Morava sozinho mas não limpava a casa. "Era parte da personalidade". A bagunça, a sujeira, a desordem. Caótico. Subversivo. Nem dizia nada. Mas atacava com ideologias. Agia com ideologias. Queria transformar a relação interpessoal, quebrar os paradigmas da superficialidade. "EU conheço todos vocês". De uma outra vida quem sabe. Qual eramos gatos e dividíamos a tigela. Não precisava dizer nada. Aprendeu a falar telepaticamente. Era assim agora. Deixou de ser e existir. Agora só era um personagem personificado de um filme qual era protagonista. Assistia de dentro daquele cinema escuro uma tela por uma câmera. Sentado na poltrona. Só. Como a morte assiste a vida passando. E a vida só imagina a morte. Espera um dia virar sua amiga. E morar com ela. Dormir com ela. Enquanto a morte solitária, assiste sua amiga no telão. E a vida reflete, pensa na morte dia e noite. Se esquece dela mesma. Abraça, beija. Ama. E renasce todo dia. Como anjos que ganham asas. Voam por ai, tentando encontrar uma poça d'água pra pular. Por que é o que nós queríamos. Ser, pulando a poça d'água. Mas nós falhamos e não somos. Nem brincamos. Nem pulamos. E nos afogamos. Nessas poças rasas da vida. Submersos nesses mares de sonhos e ilusões. Cheio de planos e promessas. E alcunhas e nomes. E é isso mesmo que nós queríamos ser. Um protagonista. Não um telespectador. De uma vida que não é nossa. Mas sim da morte. Que afinal, é tudo dela. Os olhos castanhos, do filho verme da mãe morte. É dele. Do verme. Os olhos castanhos. O cabelo cacheado. A juventude e a velhice. As noites. Vendo o sol raiar. Os dias. Sem tempo. Sem relógio. Sem hora. Que afinal, são dela. Que afinal, é dona de tudo. Dos olhos castanhos e do verme. Que é o dono dos olhos castanhos. Ou dos verdes. Ou dos azuis. E dos anjos. E das suas asas. Donas da morte. Por que voam. E pulam poças d'água.

Raul Nini
Enviado por Raul Nini em 27/06/2016
Código do texto: T5680658
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