Estação Suely Sette
Prefácio de Marcelo Garbine, publicado no livro "Lira de Sonhos" de Suely Sette
Era um domingo de outubro de 1985. Contava eu apenas oito anos de idade. Pela janela do trem, que passava pelo município de Valinhos, interior de São Paulo, avistava vacas no pasto, debaixo de um sol atroz. Ao meu lado, um homem grisalho de barba e terno... e um livro na mão... Estranho... O terno do homem era roto e batido, o livro amassado, cheio de orelhas e com páginas que já não eram mais brancas de tão imundas. Já fazia quarenta minutos que olhava o velho e ele nem piscava de tão compenetrado. E assim permaneceu durante toda a viagem, com exceção de parcos cinco segundos em que para os meus olhos mirou e disse cinco palavras... das quais eu me lembraria por toda a minha vida...
O tempo passou e as operações desta linha de trem foram encerradas. Há condição mágica nos trens. As estações e a estrada de ferro continuam lá, transgredindo os dias, fantasmagoricamente.
Resolvi visitar a estação de Campinas, destino do trem que passou por Valinhos. Parte que se desgarrou de mim ficara por lá... Trinta anos mais tarde, provavelmente, o ancião não estava mais entre nós. Fiquei imaginando quantas vidas que passaram por aquela estação já haviam encerrado suas atividades...
Foi essa a paisagem que eu escolhi para escrever o prefácio do livro da minha grande amiga e segunda mãe, a quem chamo carinhosamente de Rainha, Suely Sette.
Em plena tarde de quinta-feira, meu notebook e eu, contrastando com a "vintage", invadimos aquele legado que passageiros recém-desembarcados do trem da vida deixaram pelo caminho.
Suely Sette é mineira e a todos é familiar a proximidade que esse povo tabaréu, no sentido mais vicejante da palavra, tem com os trilhos de ferro.
Folhear páginas de papel, para um homem que veio ao mundo na segunda metade da década de setenta, era, então, algo saudosíssimo. O cheiro de mato que crescia pelas rachaduras do concreto da estação confundia os meus sentidos enquanto eu clicava para ler o documento de Word que continha este livro, ainda não impresso, que a Rainha enviara-me para que eu escrevesse este prefácio.
Saltou-me aos olhos um conjunto de versos quando minha vista alcançou um poema singelo e robusto como a alma da Sua (ou minha) Majestade: ”(...) O que me assusta agora /Depois me ajudará a entender / Que eu preciso viver! / Ir ao trem da vida / Saltar numa estação qualquer / Ficar o tempo que der (...)".
Assim é a poesia de Suely, breve como uma locomotiva a vapor que passa, tamanha sua complacência com a efemeridade humana, sempiterna como o ferro-fundido de um comboio de vagões que faz a curva dos trilhos para detrás das montanhas, no alto de um rochedo, mas que fica na memória, como doce que pode ser saboreado, a cada brisa suave e primaveril, dessas que pegam a gente de surpresa, quando nos questionamos para onde a vida levar-nos-á... ["Hoje voltei a encontrar a estrada /Que me levou de volta pra casa /Que estrada preciosa! /Tem sabor de chegada (...)"]
Quão belo e tenebroso é o que de nós se desvencilhou com o jorrar de um vento pungente que soprou, vindouro de um deslocamento de ar proveniente de um trem veloz que passou, ignorando a estação... Soberana dos versos assoma-se entre animaizinhos medrosos que somos para traduzir na letradura o que nossa alma quer berrar, mas não encontra verbos: "(...) Não posso voltar, é tarde agora /Perdi o trem da aurora / Estou à deriva, eu e minha sombra /Única companhia neste labirinto escuro / Estou só eu e os altos muros (...)".
O timbre do metal pesado que forjou brutas vagonetas ressoa no desguarnecido espírito. E tormenta sui generis de beligerante exilado seria se não viesse ao nosso socorro poetisa de cerne colossal para dizer com suas trovas que o mesmo sente, que não estamos sozinhos: " (..) Tudo passa... /Vou no trem do destino / Seguindo neste desatino de sentir saudade... / Saudade dor presente de um amor latente /Ausente (...)".
Alva alma arma e ama, amém. Assim descrevi a poesia da Rainha Suely, capaz de explicar-me em versos que poderiam ser numerados e apartados em versículos, quando li: "(...) Um velho e um menino / Duas vidas dois destinos / E a mesma vontade de ser (...)".
Dei-me conta, então, do que fazia eu sentado naquele banco construído por um marceneiro das primeiras décadas do século XX. O meu anjo da guarda sempre soube o que faz. Não me levara para lá à toa. Havia um propósito...
O relógio da torre marcou a hora nona e o fim da mansidão vespertina. Senti um arrepio na nuca como se um trem descarrilado tirasse fina do meu corpo. A Senhora dos Versos reproduziu em sua poesia "Amor além da vida" exatamente o que o homem do terno roto havia-me dito, trinta anos antes: "(...) Estarei ao seu lado, onde estiver /Cada decepção que teve na vida /Foi aprimoramento. /Hoje não entendes... /Amanhã saberás. /Sou teu anjo teu abrigo / O mesmo amor amigo /Que não podes ainda vislumbrar. Mas está ao seu lado (...)".
Acaçapado, no miolo deste poema, estavam as cinco palavras ditas a mim pelo velho, naquela tarde de 1985: "Hoje não entendes, amanhã saberás".
Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.br
Crônicas - Humor - Poesias - Letras de música -
Dicas gramaticais - Vídeos - Áudios - Downloads
Pessoal, por gentileza, quem gosta do meu trabalho pode curtir a minha página no Facebook, clicando neste link.
Se você quiser conhecer o meu site, é só clicar aqui.
Se você quiser seguir-me no Twitter, pode clicar aqui.
Se você quiser adicionar-me ao seu Facebook, pode clicar aqui.
Era um domingo de outubro de 1985. Contava eu apenas oito anos de idade. Pela janela do trem, que passava pelo município de Valinhos, interior de São Paulo, avistava vacas no pasto, debaixo de um sol atroz. Ao meu lado, um homem grisalho de barba e terno... e um livro na mão... Estranho... O terno do homem era roto e batido, o livro amassado, cheio de orelhas e com páginas que já não eram mais brancas de tão imundas. Já fazia quarenta minutos que olhava o velho e ele nem piscava de tão compenetrado. E assim permaneceu durante toda a viagem, com exceção de parcos cinco segundos em que para os meus olhos mirou e disse cinco palavras... das quais eu me lembraria por toda a minha vida...
O tempo passou e as operações desta linha de trem foram encerradas. Há condição mágica nos trens. As estações e a estrada de ferro continuam lá, transgredindo os dias, fantasmagoricamente.
Resolvi visitar a estação de Campinas, destino do trem que passou por Valinhos. Parte que se desgarrou de mim ficara por lá... Trinta anos mais tarde, provavelmente, o ancião não estava mais entre nós. Fiquei imaginando quantas vidas que passaram por aquela estação já haviam encerrado suas atividades...
Foi essa a paisagem que eu escolhi para escrever o prefácio do livro da minha grande amiga e segunda mãe, a quem chamo carinhosamente de Rainha, Suely Sette.
Em plena tarde de quinta-feira, meu notebook e eu, contrastando com a "vintage", invadimos aquele legado que passageiros recém-desembarcados do trem da vida deixaram pelo caminho.
Suely Sette é mineira e a todos é familiar a proximidade que esse povo tabaréu, no sentido mais vicejante da palavra, tem com os trilhos de ferro.
Folhear páginas de papel, para um homem que veio ao mundo na segunda metade da década de setenta, era, então, algo saudosíssimo. O cheiro de mato que crescia pelas rachaduras do concreto da estação confundia os meus sentidos enquanto eu clicava para ler o documento de Word que continha este livro, ainda não impresso, que a Rainha enviara-me para que eu escrevesse este prefácio.
Saltou-me aos olhos um conjunto de versos quando minha vista alcançou um poema singelo e robusto como a alma da Sua (ou minha) Majestade: ”(...) O que me assusta agora /Depois me ajudará a entender / Que eu preciso viver! / Ir ao trem da vida / Saltar numa estação qualquer / Ficar o tempo que der (...)".
Assim é a poesia de Suely, breve como uma locomotiva a vapor que passa, tamanha sua complacência com a efemeridade humana, sempiterna como o ferro-fundido de um comboio de vagões que faz a curva dos trilhos para detrás das montanhas, no alto de um rochedo, mas que fica na memória, como doce que pode ser saboreado, a cada brisa suave e primaveril, dessas que pegam a gente de surpresa, quando nos questionamos para onde a vida levar-nos-á... ["Hoje voltei a encontrar a estrada /Que me levou de volta pra casa /Que estrada preciosa! /Tem sabor de chegada (...)"]
Quão belo e tenebroso é o que de nós se desvencilhou com o jorrar de um vento pungente que soprou, vindouro de um deslocamento de ar proveniente de um trem veloz que passou, ignorando a estação... Soberana dos versos assoma-se entre animaizinhos medrosos que somos para traduzir na letradura o que nossa alma quer berrar, mas não encontra verbos: "(...) Não posso voltar, é tarde agora /Perdi o trem da aurora / Estou à deriva, eu e minha sombra /Única companhia neste labirinto escuro / Estou só eu e os altos muros (...)".
O timbre do metal pesado que forjou brutas vagonetas ressoa no desguarnecido espírito. E tormenta sui generis de beligerante exilado seria se não viesse ao nosso socorro poetisa de cerne colossal para dizer com suas trovas que o mesmo sente, que não estamos sozinhos: " (..) Tudo passa... /Vou no trem do destino / Seguindo neste desatino de sentir saudade... / Saudade dor presente de um amor latente /Ausente (...)".
Alva alma arma e ama, amém. Assim descrevi a poesia da Rainha Suely, capaz de explicar-me em versos que poderiam ser numerados e apartados em versículos, quando li: "(...) Um velho e um menino / Duas vidas dois destinos / E a mesma vontade de ser (...)".
Dei-me conta, então, do que fazia eu sentado naquele banco construído por um marceneiro das primeiras décadas do século XX. O meu anjo da guarda sempre soube o que faz. Não me levara para lá à toa. Havia um propósito...
O relógio da torre marcou a hora nona e o fim da mansidão vespertina. Senti um arrepio na nuca como se um trem descarrilado tirasse fina do meu corpo. A Senhora dos Versos reproduziu em sua poesia "Amor além da vida" exatamente o que o homem do terno roto havia-me dito, trinta anos antes: "(...) Estarei ao seu lado, onde estiver /Cada decepção que teve na vida /Foi aprimoramento. /Hoje não entendes... /Amanhã saberás. /Sou teu anjo teu abrigo / O mesmo amor amigo /Que não podes ainda vislumbrar. Mas está ao seu lado (...)".
Acaçapado, no miolo deste poema, estavam as cinco palavras ditas a mim pelo velho, naquela tarde de 1985: "Hoje não entendes, amanhã saberás".
Marcelo Garbine (Mingau Ácido) – @mingauacido – mingauacido.com.br
Crônicas - Humor - Poesias - Letras de música -
Dicas gramaticais - Vídeos - Áudios - Downloads
Pessoal, por gentileza, quem gosta do meu trabalho pode curtir a minha página no Facebook, clicando neste link.
Se você quiser conhecer o meu site, é só clicar aqui.
Se você quiser seguir-me no Twitter, pode clicar aqui.
Se você quiser adicionar-me ao seu Facebook, pode clicar aqui.