Una Cerveza Más Fría que el Corazón de Tu Ex…

Una Cerveza Más Fría que el Corazón de Tu Ex…

Na primeira semana do ano de 2016, viajei à Argentina junto a dois amigos: Adilson Ferraz, companheiro para todas as horas, e seu primo, Rodrigo Jorge, com quem logo fiz bons laços. Sempre atento às relações que a vida traz e desfaz, refleti sobre o que o Filósofo São Tomás de Aquino explicava sobre a amizade. O escolástico a compreendia como sendo uma união entre pessoas que querem as mesmas coisas e rejeitam as mesmas coisas. Isto implica na necessidade de encontrarmos um grupo que se identifique com os nossos conceitos e valores, pois, caso contrário, estaremos isolados dentro de um grupo de estranhos e hostis. Olavo de Carvalho complementa explicando que essas pessoas não nos compreendem e nos julgam como “os diferentes”, “os marginais”, nos enfraquecendo ao longo dos tempos. A amizade é um dos pilares com os quais se constitui e se ergue nossa personalidade. Se não encontramos os amigos adequados, nos associamos a outros grupos que nos oferecerão seu “apoio” e sua “amizade” em troca de nossa corrupção, e da desistência de sermos nós mesmos. Em troca de abandonarmos nossos próprios valores, fazendo sacrifícios inúteis no altar de uma falsa amizade.

Quando temos amizades de longa data, principalmente aquelas constituídas durante os tempos da aurora, na vigência da infância, é comum que exista um nível maior de intimidade, e consequentemente, de liberdade quanto à forma de interagir com os amigos. Acontece que muitas vezes as pessoas confundem intimidade com transgressão, e liberdade com desrespeito. Quando esta diferenciação não é clara, pois de fato, às vezes a linha que a separa pode chegar a ser tênue, as brincadeiras que carregam em si o elemento da inocência, podem transmutar para algo diverso. Neste aspecto, a característica tão importante que envolve as amizades ditas verdadeiras, que é, de um lado, a liberdade em poder expor falhas e faltas do amigo, e do outro, a abertura deste em ouvir tais críticas para assim haver um crescimento, dá lugar a lavagens de roupa suja. Subsistem ataques pessoais ou opiniões revestidas pela inveja, travestidas de “críticas construtivas”. Grupos de amigos que eventualmente põem os devidos “pingos nos is”, expondo os erros de outros integrantes numa conversa franca, é algo muito benéfico para fortalecer os laços, a consideração entre os membros, e o principal: lapidar o caráter. Entretanto, quando os vínculos não são sinceros, o que efetivamente ocorre são atritos intensos e frequentes, suficientes para desgastar a alma. Amizades que vivem de brigas e desrespeitos não podem ser verdadeiras. Pior ainda é quando utilizam a justificativa de que “amigos verdadeiros são os que falam aquilo que não é agradável de ouvir”. As amizades são como os relacionamentos amorosos. Se um casal sempre está arrumando brigas e rusgas, por óbvio que a relação não é saudável. De igual forma, a falta de maturidade faz com que fiquemos presos a amigos que não nos servem, que não agregam valor e não nos fazem crescer, porque são pessoas com interesses divergentes, e visam ter outro tipo de vida, incompatível com nossas aspirações e potências. As amizades erradas também podem ser causa da ruína e do atraso na vida de alguém.

Devemos ficar sempre atentos se, as pessoas que integram nosso grupo valorizam nossas qualidades; se demonstram interesse em aprender o que temos a ensinar e a oferecer; se nos dirigem deboches travestidos de brincadeiras inocentes. Precisamos verificar suas crenças e visões de mundo e compará-las com as nossas. Notem que, com isto não quero dizer que só podemos ser amigos de pessoas que pensam igual a nós. Quero dizer que, os conceitos e valores que norteiam a vida daqueles que constituem nossas amizades, não podem ser conflitantes com os nossos. Diferenças são inevitáveis e essenciais, pois trazem o tempero da vida e formam o dinamismo das relações sociais. As Contradições não. Devem ser rechaçadas. E é isto que Tomás de Aquino se referia com “querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas”.

No caminho à Argentina, enquanto sobrevoávamos por alguma parte do gigante chamado Brasil, logo me veio muitas lembranças dos antigos amigos. Lembrei que sete anos antes, em 2009, quando eu estava terminando o ensino médio no Colégio Diocesano de Caruaru, o professor de português Menelau Júnior, que até hoje lhe reservo gratidão e admiração, disse em seu discurso algo mais ou menos neste sentido: “- Não pensem que as amizades de hoje continuarão sendo como são. Elas mudam, e as de vocês também vão mudar. Não será mais a mesma coisa. É natural, e por isso não maldigam nem critiquem seus antigos amigos se, no futuro, os laços já não forem mais os mesmos”. Como sempre fui alguém que valorizava ouvir conselhos de pessoas mais velhas, prestei atenção às suas palavras, porque elas tinham um peso que expressava a experiência que os anos, e alguns fios de cabelos brancos traziam ao seu testemunho.

Como diria Oswaldo Montenegro: “Faça uma lista de grandes amigos; Quem você mais via há dez anos atrás; Quantos você ainda vê todo dia; Quantos você já não encontra mais”. Lembrei de todos os amigos que a memória me permitia recordar, fazendo-me imaginar como estaria minha vida, caso todas aquelas amizades tivessem permanecido da mesma maneira desde as décadas idas. Reconheci que o tempo põe tudo em seu devido lugar, e a vida, ao fechar uma porta, abre outra em seguida. Cada amizade que acabou e cada novo amigo que veio colorir meu coração, toda relação que teve fim e qualquer outra que começou, foram responsáveis em moldar meu presente. Só assim os solos porteños hoje sorriam para mim, sendo o destino daquele voo, e junto a ele, a possibilidade de fazer um mestrado fora. Adilson Ferraz, que fora meu professor no 1º período do curso de Direito, no primeiro semestre do ano de 2011, e desde aquela época já tínhamos um contato amistoso, porém, não possuíamos laços tão próximos, reapareceu em minha vida como um anjo enviado por Deus, num momento em que a vida fechou-me algumas portas, mas várias outras foram abertas através dele. Uma infinidade de coisas positivas ocorreu. Principalmente a Filosofia. “Querer as mesmas coisas e rejeitar as mesmas coisas”.Tenho por ele a mais terna das gratidões.

Enquanto o avião tremulava suavemente ao chocar-se com as nuvens, a cabine estava completamente iluminada pelo Sol. Brilhava magnificamente tão perto de nós. Eu estava tranquilo porque nossas asas não eram coladas com cera de abelha, e por isso não corríamos risco de elas se desfazerem com o calor do carro de Apolo. Um voo calmo e silencioso. Chegamos no sábado, dia 02 de janeiro, no entanto, só poderíamos ir à Universidade na segunda-feira, dia 04. Passado o fim de semana fomos à UBA, uma gigante fincada no solo. Não tenho muita noção de medidas, por isso não me arriscarei em estimar seu tamanho, mas o prédio tem cinco andares e até subsolo. Tão grande quanto um quarteirão inteiro, na entrada há uma escadaria longa em degraus e larga em comprimento. Em frente às portas de entrada devem ter umas 20 colunas em estilo romano, largas o suficiente para duas pessoas a abraçarem. Um templo dedicado ao Deus das Ciências Sociais. Nós voltaríamos por lá em alguns dias, e nesta ocasião de regresso, eu presenciei uma cena que me fez repensar meus posicionamentos e impressões ante o amor. Mais à frente neste texto abordarei este ocorrido. Após irmos embora do bairro Recoleta, partimos em busca da Universidad Católica Argentina – UCA, em Puerto Madero. Caminhamos pelas laterais do rio da Prata e paramos uns instantes para descansar as pernas e sentir a brisa sob uma sombra agradável. Chegando à UCA, nossos planos de passarmos a tarde na biblioteca olhando algumas teses de doutorado e dissertações de mestrado foram frustrados, porque estavam reformando-a, e a Universidade ficaria fechada até fevereiro. No lado de fora, esta instituição se estende pelo quarteirão, em vários prédios pequenos enfileirados ao longo de uma calçada enorme. O ambiente é arborizado e belo. Os prédios/pavilhões têm estilo inglês, no tijolo cru, com uma aura convidativa para estudarmos em suas dependências. Parei para tirar algumas fotos daquele lugar, enquanto no ponto de ônibus, pertíssimo de nós, a condução que pegaríamos acabara de partir e teríamos que aguardar outro ônibus.

Esperamos mais um, que não tardou em aparecer no final da avenida. Quando me dei conta, ao meu lado havia uma mulher, de aparentes 30 – 32 anos de idade, junto a outras três amigas. Ela usava um vestido florido um pouco acima dos joelhos. Seus cabelos castanhos ficavam logo abaixo da linha do ombro, e seus olhos eram de mesma cor. O rosto fino, corpo magro, seios pequenos e o quadril com uma curva perigosamente acentuada. Usava uma sandália alta. As unhas dos pés e das mãos eram curtas, perfeitamente cuidadas e pintadas numa tonalidade escarlate viva. O rosto desta mulher passou uma expressão séria, me fazendo imaginar suas decepções amorosas no passado. Vi imagens passando pela minha cabeça, desta sacerdotisa grega oferecendo seu coração a um troglodita que a destratava. A vi chorando pelos cantos de sua casa, para em seguida levantar sua cabeça e voltar a caminhar erguida, recompondo sua dignidade.

Visualizei suas conquistas: formou-se no ensino médio; entrou na faculdade; terminou o curso de Arquitetura. Conseguiu um emprego excelente em uma construtora, que não tardou em lhe promover pelos ótimos trabalhos realizados. Linda, delicada e dedicada, olhava para os homens com certa desconfiança. Encontrou ao longo de sua vida adulta, muitos que não queriam nada além de sexo. Esperta e conhecedora das artimanhas da conquista e sedução, rapidamente identificava o discurso pronto daqueles que não buscavam compromissos amorosos. Não se deixava enganar e jurara para si mesma, que nunca mais se permitiria sofrer por homem nenhum, da mesma forma que sofrera por aquele namorado da adolescência. Por isso evitou relacionamentos fugazes. Irredutível, não gostava de meio-termos: ou estava com alguém por completo, ou não estava. Entrou no mestrado, conheceu um professor brasileiro, dois anos mais velho. Elegante, inteligente, bem sucedido e bem cuidado, sempre perfumado. Era conhecedor de bons vinhos, das línguas românticas e da literatura que masturba o intelecto e causa orgasmos nos sentimentos. Falava além do espanhol, francês, inglês, português e italiano. Não lhe faltava um galanteio e nas horas vagas tocava no piano da Universidade. Vez ou outra deixava um bilhetinho em forma de poema em sua pasta. Sempre iam juntos a uma cafeteria, ali mesmo em Puerto Madero, mas, após alguns meses de convivência, a pediu em namoro enquanto estavam sentados na grama em um bosque de Palermo.

Adilson bateu em meu ombro me fazendo sair de meus devaneios. Entramos no ônibus e sentamos na última fileira. As quatro mulheres estavam sentadas juntas, algumas cadeiras à frente. Conversavam constantemente e eu não conseguia parar de olhar para aquela mulher, tão bonita e de traços gregos. Virava-se para trás para falar com as amigas. Prendeu seu cabelo. Quando ria, percebi a leveza de seu sorriso que até então estava escondido, e senti que sua aura estava em harmonia. A descontração e a boa energia que vi emanada de sua pessoa, me fez pensar que o romance imaginado anteriormente, era de fato real. Seu coração deveria ter dono, seus suspiros já deviam ser endereçados e seus planos provavelmente já se voltavam para constituir sua família. Uma mulher desta condição não tem olhos para um jovem rapaz feito eu. Elas são cortejadas e conquistadas por homens maduros, independentes e com a vida estável. Status que eu ainda não pude conseguir.

À medida que o ônibus chacoalhava, eu não tirava meus olhos dela. Após uns 30 minutos descemos todos juntos na mesma parada e fomos embora. Eu peguei o caminho da direita e ela, da esquerda. Metáfora para indicar que nossos caminhos não poderiam ser os mesmos. Nossos destinos são opostos. Minhas observações durante aquele trajeto estão expostas neste poema, que comecei a escrever durante as madrugadas no hostel Millhouse.

A Mulher de Vestido Florido.

Caminhei ao lado da universidade,

Para encontrar em meu destino

Uma mulher mais que bela,

E sem nenhuma intencionalidade

Fez-me desejar não ser menino

Para cortejar a beleza dela.

Quem és tu

Deusa dos contos gregos?

Mirei teu corpo nu

A imagem mais repleta de apegos,

Que dominou meu pensamento

Enquanto eu a olhava lá de trás

Dum ônibus vazio em movimento

Esperançoso em te querer demais.

Como eu quis ser homem...

Independente e sem amarras,

Desejo e paixão nos tomem

Com intenções bem claras.

Quem foi o ditador

A quem entregaste teu amor

E ele indigno,

Tratou-te com desamor

Tal qual maldito meliante

Deixando severo teu semblante?

Alheio ao mero gozo,

Um rosto de traços sérios,

Tens um corpo formoso

Envolto por densos mistérios.

Mas quem foi o anjo

Que te ofereceu ternura

Trazendo um lindo arranjo

Tornando-te a mais bela criatura?

Fez-te sentir-se querida

Amada em cada suspiro do dia,

Conhecedora dos ciclos da vida

Expressado enquanto sorria.

Hoje és bem entendida

Do amor e suas sanhas,

Não se pega desprevenida

Nos jogos e outras barganhas.

Decidida, tens olhos duros

Para jovens garotos.

Meros brotos

Pelos anos imaturos.

Ai ai Meu Deus!!

Por que isto me fazeis?

Colocais nos caminhos meus

Talvez por altivez,

Mais uma busca pelo amor

Que desconheço toda vez

Se colherei aquela flor.

Sei porque assim procedeis

Sou meio de vossa vontade,

O poeta, em sua terna embriaguez

Voa além dos vales da saudade.

Entretanto, os poetas

Vivem de amores impossíveis,

Com suas mentes despertas

Buscam musas inatingíveis.

Quando escrevemos penetramos

Nos encantos do Divino

Assim, sempre que amamos

Tornamos o mundo mais fino.

Ó Mulher do Vestido Florido,

Quem és, quem és, quem és?

Tua mirada deixou-me perdido

Senti-me jogado aos teus pés.

És materialização da clemência

Que passeia por essas veredas

Resgatando a essência

Da beleza das alamedas.

De buenos aires porteños,

Son ricos como el valle,

Pero es la mujer de mis sueños

La más bella de la calle.

J'étais un homme heureux

Avant de te connaître,

J'avais refoulé tout

Au fond de mon être.

Quand tu viens comme un ver

Me ronger par dedans,

Et réveiller en moi

Le feu d'un vieux volcan.

Foste minha, só minha,

E quando te amava olhando,

Rabisquei poemas em linha

Enquanto estava pensando.

Vi-me em teus braços,

Deitados na grama da praça,

Amor desenhando nossos traços

Recebíamos grande graça.

Te vi carregando uma criança,

O filho que me darias

Vi amanhecer a esperança

Em meu vale "las Tres Marías".

Vi nossa completa fidelidade,

Com as pontas de meus dedos

Conheço a geografia da tua pele,

Sussurros, confidências, intimidade

Desvendei todos seus segredos

Que o prazer nos impele.

Vi o fruto doce

Das encruzilhadas do destino,

Tão belo seria se fosse

E eu não fosse um menino.

És mulher madura e já feita,

Sou jovem rapaz dependente,

Aluno da vida e do repente

Que busca amálgama perfeita.

Por isso não me notaste,

Não tenho nada que procuras,

Ser refém de minha pouca idade

É a maior das torturas.

Quisera eu, que tu, Afrodite,

Me fizesse teu Campeão

Para compartir teu sagrado leito,

Mas a vida isso não me permite,

Contigo me reserva solidão

Sem deitar sobre teu peito.

Ao descermos da condução

Na mesma parada,

Antes de nossa separação

Dei-te a derradeira olhada.

Teus olhos deslizaram pelos meus,

Mas foram os meus

Que ficaram presos aos teus,

Enquanto os belos teus

Foram em busca de algo

Que lhes era mais importante.

Ahora yo te hago

Un poema de amante.

Só me resta dizer adeus,

E querer um dia saber teu nome,

Entregar nossos destinos a Deus

Pois agora de minha vida somes...

Um dia depois, fomos até a Plaza de La Mujer, também em Puerto Madero. Lá, me deitei na grama observando o céu, sob a sombra modesta de uma árvore amiga. Perto de nós havia uma família, um casal e três filhos. Nos fazendo companhia também havia algumas pombas. Enquanto eu estava deitado, tirei o celular do bolso e fiz uma fotografia enquadrando a grama, algumas árvores com suas sombras, a criança ao fundo e a pomba mais próxima de mim, em perspectiva. Observando esta imagem, intuí e concluí que ambos (criança e pomba) são envoltos por suas indiferenças, alheios aos dissabores e às desordens que a rotina e o mundo trazem. Ambos vivem perfeitamente em suas autenticidades, e aqui não me refiro à autenticidade Heideggeriana, mas sim à leveza do Ser: Um acredita no infinito e na permanência das coisas, que tudo é para sempre. O outro (acredito) nem reconhece a si, quanto mais a passagem de lapsos temporais. Um aprende através de maneiras variadas, que a maldade existe em algumas pessoas. O outro só aprende pelo exemplo e pelo instinto. O que, em um momento os diferencia, em outro recorte os assemelha: a inocência.

Não me refiro ao conceito de autenticidade do filósofo Heidegger, porque para este, autentico é aquele que reconhece a finitude da existência. Não querendo diminuir a profundidade da análise e dos estudos filosóficos deste autor, ressalvo que para os fins destas linhas que escrevo, além de minha natural limitação para explicar com mais profundidade o tema, apenas pincelo seu conceito. Então, grosso modo, somos autênticos quando pensamos a vida levando em consideração a quantidade limitada de dias e noites disponíveis para vivermos. Lembro da infância, e lá eu sabia que existia uma coisa chamada morte. Ao questionar o que era esta “Coisa-mulher-senhora”, me diziam que ela vinha no momento em que Deus queria que nós estivéssemos ao Seu lado. Durante um determinado tempo, eu a compreendia como um estágio obrigatório da vida, onde a pessoa deveria ficar debaixo da terra, mesmo se fosse contra sua vontade. Inclusive tinha curiosidade de saber se, enquanto mortos, poderíamos usar os cinco sentidos de dentro do caixão. Desde muito pequeno eu sabia e/ou me era dito, que em determinada circunstância, a vida sairia daqui, da realidade percebida/ vivida, para ir a algum outro lugar, onde não se pode chegar de carro, nem de avião. Foi nesta ocasião, quando minha imaginação infantil já um pouco mais apurada, foi capaz de assimilar vagamente as idéias de imanência e transcendência. Mas ainda assim, para Heidegger eu não poderia me considerar autêntico. Mesmo sabendo da existência de uma de tal Morte, ao viver o dia-a-dia da infância, tão cheia de plenitude e felicidade, ao lado de uma família maravilhosa, não passava pela minha cabeça que isto poderia acabar. E vivi assim, inautêntico, até o momento em que o Papai-do-Céu sentiu saudades de minha avó, Mercedes, e a chamou de volta ao Lar. Inicialmente compreendi e aceitei esta justificativa, porque era impossível que alguém, inclusive Deus, não amasse nem sentisse saudades de minha avó. Saber que existe uma coisa chamada morte, é bem diferente de senti-la. Diz o ditado: “quem sofre com a despedida são os que ficam e não os que vão”, sem entrar no mérito metafísico desta afirmação, me recordo que fora durante o velório daquela senhora, tão pura e tão carinhosa aos meus olhos, que eu chorei pela primeira vez sentindo dor.

Era o mês de novembro e eu estava prestes a completar 9 anos de idade. Até então os meus choros se davam por reações orgânicas e irracionais, como mecanismos de defesa inconscientes, existentes em todo ser humano, o que, mesmo assim, não descaracterizava o sofrimento. Mas, aquele 28 de novembro de 1999, carimbou minha primeira lágrima consciente sobre a existência de algo chamado “dor”, além de me fazer mudar a compreensão de “saudade”. Expôs que nem tudo na vida são flores, embora a minha avó estivesse coberta com um monte delas. Marcou e reconheci que as rotinas um dia acabam e mudam por completo. Aquele foi meu primeiro choro motivado pela tristeza, pela saudade, e de certa forma, pelo desespero. Predicados para um choro válido e uma angústia verdadeira. Me perguntei inúmeras vezes por que aquilo tinha que acontecer e as pessoas não podiam viver sempre juntas. Chorei, chorei, chorei... e como chorei. Quando me afastava da área do velório e caminhava pela igreja, subi e desci por escadas serpentinas que levavam a áreas remotas. Não encontrei nenhuma passagem bloqueada; nenhuma porta estava trancada. Não sei se por mero acaso, se por definição de algum Plano Maior do Cosmos Onisciente, ou se porque ainda estávamos na década de 1990 em uma cidade do interior, onde o vizinho confiava no vizinho e ninguém falava de violência nem roubo.

Enquanto eu olhava as figuras dos Santos Católicos, pensava em minha amada Mercedes e se era para lá que ela estava indo, ficar ao lado destes Seres. Comecei a não aceitar a sua partida. Pensava em Deus e chorava ainda mais e com mais força, esperançoso de que Ele, ao olhar para todas aquelas pessoas em luto, me visse tão pequeno e tão inocente, e de alguma forma se apiedasse de mim, trazendo minha avó de volta à vida. Eu queria vê-la abrindo os olhos, se levantando daquela cama de madeira, pegando em minha mão e perguntando se eu queria Umbuzada. Voltaríamos para sua casa, o Reino Encantado do Carinho e da segurança, e tudo aquilo não teria passado de um engano, de um mal entendido, afinal, a Dona Morte, já tão velha e com a memória gasta, teria errado o endereço. Ao que parece, Deus não ouviu minhas súplicas... Ou ouviu, mas os Seus desígnios eram outros...

Olhando a criança, me perguntei quando e qual seria o momento que a vida, com os cinzéis da realidade e da razão, que entalham e esculpem o caráter, arranhariam o mármore de sua inocência. A partir de qual instante ela se lembraria dos momentos em que deitava na grama da praça com seus pais e irmãos, como sendo o instante de sua vida em que ela desconhecia a autenticidade, a impermanência e a transcendência? Aquela criança apenas sentia a imanência por vivenciá-la diariamente, sendo sua realidade íntima. Discordo de Heidegger porque não conheço a fundo seu conceito, então, levando em consideração para a análise minha experiência de vida e as impressões que a interpretação gramatical da palavra me remonta, eu não chamaria de inautênticos aqueles que se enquadram no que fora dito anteriormente. Os chamaria de inocentes. Considero a pomba e a criança “autênticos” porque são leves. Vivem sem nenhuma preocupação com o amanhã. Vivem unicamente em função do aqui e do agora, sem receios, temores, medos, nostalgias nem amarguras. Um pela ausência de racionalidade (como a ciência assim explica), por não ser ciente de sua condição. O outro por indiferença para com as preocupações. Autênticos porque são exatamente aquilo que a Natureza de suas condições os faz serem. Não se moldam em absolutamente nada que é externo à suas condições intrínsecas, para passarem pelo tempo e pela vida. São o que são, e não o que os outros esperam ou desejam que sejam. A pomba sempre será pomba e agirá como pomba, não importando se desejamos que ela aja como um cachorro. A criança, quando abrir seus olhos e ficar madura, já não será mais criança.

Não sou Filósofo, apenas tento cortejar a filosofia, mas acredito que o fim máximo dela - instigar o raciocínio – possa ser atingido mesmo que eu seja poeta. Voltando ao fio da meada, prosseguimos nossa caminhada pelo bairro nobre de Puerto Madero. Passando em frente a um restaurante sofisticado, havia à porta um quadro negro enorme. Nele estava escrito com giz colorido a seguinte frase: “Tenemos la Cerveza Más Fría que el Corazón de Tu Ex…”. Na verdade não havia a palavra “coração”, e sim um desenho em giz rosa, de um coração partido. Entretanto, a função da linguagem fora cumprida e o anúncio irreverente angariava fotografias dos turistas e o principal: “la cerveza fría” era vendida sem dificuldades.

A frase, além de chamar atenção, para um transeunte mais atento podia instigar a reflexão. “Mais fria que o coração de tua/teu ex”... Afirmação semelhante não seria estranha se o coração frio em questão fosse de um desconhecido qualquer, que passa pela rua, ou de algum inimigo. Mas, o coração gelado é de alguém que um dia amou o Agente a quem a frase se dirigia. Como é possível uma mudança tão drástica? Como nós conseguimos transitar tão bem por pólos extremos e opostos? Hoje te amo; amanhã te odeio. Hoje não vejo a hora de te ver e correr para os teus braços; amanhã viro a cara ou finjo que não te vi. Hoje atendo tua chamada e respondo tua mensagem imediatamente; amanhã deixo a ligação cair na caixa de mensagem ou bloqueio teu número. Hoje falo teu nome pensando em voz alta, que é também o som dos meus suspiros; amanhã torço para que ninguém fale teu nome, porque este virou uma palavra proibida de ser pronunciada em minha presença. Hoje quero que todos vejam que estamos juntos e felizes; amanhã quero que ninguém saiba que você existiu. Hoje é pra sempre; amanhã é pra nunca mais...

Com base em tantos exemplos que conheço, me parece que o destino do casal formado em nossos dias é virar um par de números e perfis bloqueados em agendas telefônicas e em redes sociais. É, no fim das contas, tornar-se um conjunto de memórias confusas, que agora fazem parte de um passado esquecido, distante, e até mesmo proibido. Aparentemente, os apaixonados de nossos tempos andam perdendo a gratidão pelos bons momentos vividos ao lado dos antigos companheiros. Ex-namorados (as), ex-esposas e maridos, partem às vezes da paixão cega ou de um suposto amor construído, transmutado em ódio destruidor ou em frieza irreconhecível. Pior que não é raro buscarem vingança. E se eventualmente, o outro estiver feliz e realizado após o término, não é difícil nutrirem rancor ou ficarem indignados com uma “superação tão rápida”, afinal, é um absurdo não fazermos falta.

Há inclusive aqueles que se relacionam com alguém que sequer viu pessoalmente. Conheci vários casais formados e mantidos à distância. Um deles namorou por mais de um ano sem nunca terem visto um ao outro. A moça, de uma hora para outra, ao que parece se abusou e simplesmente bloqueou o perfil e o número daquele que, para as convenções sociais, seria considerado seu “namorado”, embora nunca tenham se beijado nem se abraçado, nem mesmo conheciam o cheiro do perfume do outro. A internet é um meio metafísico, virtual. Lembremos que para a filosofia, “virtual” é tudo aquilo que não é real, mas que tem potencialidade de ser real, mas ainda não o é. Se analisarmos este meio e o considerarmos como uma extensão de nossas vidas e de nossos convívios, aonde podemos tecer novas relações e formar novos tipos de vínculos e interações, então, por óbvio deveriam ser presentes nossa educação, consideração e respeito para com aqueles que estão próximos. Porém, em um tempo em que novas amizades e relacionamentos (lato sensu) se formam mediante um clique, também com este mesmo clique amizades são encerradas... Independentemente do tempo de duração... Pessoas nunca foram tão descartáveis.

Três parágrafos acima eu mencionei que a conjuntura da frase do anúncio me soava estranha, entretanto, muitos não acham. Muitos acham que é natural e inclusive esperam receber xingamentos, cobranças, maledicências e uma carga infindável de energia negativa de seus ex-amores. Parece que, estranho é encontrarmos pessoas que terminam relacionamentos e conseguem manter um vínculo afetivo de respeito, gratidão e amizade. Tenho um amigo muito querido, que hoje vê e trata sua ex-esposa como uma irmã. Preocupa-se com ela, e a ajuda em tudo que precisa. Quando conto esta história algumas pessoas ficam impressionadas. Parece que é incomum dois indivíduos que um dia se amaram, poderem continuar este amor de outras formas. A impressão que tenho é que o status perante os outros, é quem rege o comportamento do casal entrei si. Se, “socialmente” estiverem juntos, existe respeito e “amor”. Se o status muda para solteiros ou divorciados, os bons sentimentos “existentes” anteriormente, se transmutam para negatividade. É corriqueiro ouvir que um relacionamento “só passa a ser sério” quando o casal divulga no Faceboook. A partir deste ponto que as obrigações de companherismo passam a ser exigíveis. Aonde foi, ou quando foi que nos perdemos?

Perdemos a noção e a coerência. Perdemos a noção do que são as relações humanas: Tratamos pessoas como objeto ou até mesmo como lixo. Perdemos a coerência do que pensamos, sentimos e efetivamente fazemos. Uma hora olhamos para aquela pessoa como o amor de nossas vidas, outra hora como nosso pior inimigo. A figura de um ex-parceiro se assemelha às superstições. Agimos como se tivéssemos avistado um gato preto no caminho, ou que, ao fundo há uma escada, cuja presença nos faz mudar a direção seguida, para não passarmos debaixo dela. Aquela pessoa que antes direcionávamos nosso carinho e preocupações, de repente passa a ser tratado como um desconhecido qualquer, indigno de receber um “boa tarde”. Acredito que esta seja a palavra mais apropriada para definir nosso tempo: incoerência. Visível em diversas searas da sociedade. Dos relacionamentos íntimos à classe política que diz nos representar. O discurso jamais se coaduna com a ação.

Dias depois desta ida à Plaza de la Mujer e a Puerto Madero, próximos do fim da viagem, voltamos à UBA para assistirmos uma palestra de abertura ao período letivo de um dos programas de Doutorado. Após as palavras tão belas do professor Ricardo Rabinovich, saímos das dependências da Universidade e fomos fumar cachimbo na escadaria de entrada. Cortejados por tão linda paisagem porteña, um pôr do sol sereno nos sorria como um colírio para os olhos. Tentando fugir do vento que dificultava minhas tentativas de acender o fornilho com palitos de fósforo, busquei refúgio atrás de uma das colunas da entrada da Universidade, e então, vi duas jovens um pouco escondidas, se resguardando da vista alheia. Despreocupadas com minha presença a uns 10 metros de distância, abriam largos sorrisos ao percorrem com os olhos cada recôncavo do rosto da outra. A proximidade que mantinham entre si, os abraços e os toques das mãos, além de denunciarem o que já não era implícito, me faziam esperar ver os seus beijos, que seguiriam naturalmente em alguns instantes.

Apesar de ter alguns amigos homossexuais de longa data, que possuem uma parte de meu coração reservada a eles, nunca achei agradável nem interessante ver pessoas do mesmo sexo terem relações físicas. Porém, notei que os sorrisos daquelas duas moças eram tão sinceros. Os abraços que trocavam eram leves, despreocupados e acolhedores. Se beijavam com vontade, expressando de forma nítida, o teor libidinoso e proibido dos encontros de suas bocas, fazendo questão de romper com costumes antigos ao mergulharem naquele oceano morno de segredos partilhados e de mistérios sussurrados.

Costumo dizer que pré-conceito não é a mesma coisa de discriminação. Então, sempre estamos envolvidos por pré-conceitos, mas não necessariamente discriminamos algo por termos “conceitos prévios” sobre aquilo. Desta forma, adentrando em meus conceitos prévios, tentei deixar de lado as classificações para observar uma suposta essência, ou uma realidade livre de aparências fenomênicas. Não pude deixar de admitir que eu via uma nítida manifestação sincera de carinho. Se era amor, não me cabe dizer, e independentemente das conceitualizações de “certo” ou de “errado”, também não adentrei neste mérito. Apenas observei, de certa forma maravilhado, pondo em cheque a rigidez de determinados conceitos que aparentam perder a importância quando se esbarram no drama humano. Até pensei em voz alta que no fim das contas, “todo mundo quer mesmo é ser feliz”. Mesmo que eu achasse aquela cena feia, talvez minha noção de beleza não diminuiria nem desmereceria a sinceridade daqueles olhares. Não sou hipócrita, por isso afirmo que eu não gostaria que minha filha repetisse aquele comportamento que eu via diante dos meus olhos. Mas, caso a vida me reservasse uma filha com tal inclinação, e a educação que lhe dei não fosse suficiente para fazê-la seguir um comportamento que eu acredito ser mais apropriado, eu apenas esperaria que ela fosse feliz com a vida que escolher. Creio que a única característica que julgo ser inadmissível em uma pessoa, é a desonestidade, a canalhice de caráter. Dias antes avistei o anúncio da cerveza más fría, e na ocasião em que eu segurava um cachimbo e olhava duas moças envolvidas num paradoxal movimento dialético, pois ali não havia palavras, senti como as nossas relações afetivas/sexuais podem ser tão frágeis e passageiras. Confesso que intimamente eu desejei que no futuro, o coração de nenhuma das duas se assemelhasse àquela cerveja de Puerto Madero. Após ter conseguido acender meu cachimbo, voltei a sentar num dos degraus. Contemplei o sol poente, tão nostálgico e saudoso. Sentindo a brisa suave, pensei que apenas o sol, a lua, as estrelas e as estações dos anos vindouros, testemunhariam se aquelas duas amantes cairiam na contradição e na incoerência da fragilidade de nossas relações ditas amorosas.

Dias antes, ao terminamos nossa “fría cerveza”, pegamos um táxi e voltamos para o Hostel. Depois daquele dia, além do regresso à UBA, freqüentaríamos duas festas animadas promovidas pela administração do Milhouse. Onde nos hospedamos estava repleto de israelenses, australianos, e outras nacionalidades da América Latina e Europa. Conhecemos três moças de Recife, que me aparentaram não serem boas pessoas, por isso, reconheci que a indiferença é útil em algumas ocasiões. Conhecemos um Paulista, Henrique, muito gente boa. Nos arrependemos de não termos pego seu número de telefone e facebook. Quem sabe um dia o reencontraremos.

Esta não fora minha primeira viagem ao exterior. O contato com uma cultura diferente da nossa tem um caráter pedagógico muito grande, pois, dificilmente se sai ileso desta interação. Acarreta uma modificação em nossos conceitos, preconceitos, paradigmas e formas pré-moldadas de pensamento e ação. A experiência humana e a vida social são multifacetadas e o dinamismo do tempo comprova que o aprendizado é um eterno lapidar, num movimento constante e irreversível. No momento em que se aprende uma coisa nova, imediatamente deixamos de ser aquele que éramos, e passamos a ser pessoas diferentes. Por menor que seja o conhecimento aprendido, novos elementos ficam apreendidos em nosso âmago, originando as mudanças de visão e de comportamento.

Dentro da “fenomenologia” que encontrei em todos os percalços da vida, percebi de forma muito clara nesta viagem a constante presença da indiferença e da neutralidade da convivência. Os acontecimentos estão lá, por aí, aguardando nossa tentativa de defini-los e de compreendê-los, para assim moldá-los ou usá-los conforme nossos anseios ou nossas intenções diversas. Mas são sempre neutros. Talvez seja por isso que Nietzsche dizia que não há fatos, apenas interpretações. Deixo aberta uma pergunta que pretendo investigar futuramente, se, se cabe a nós penetrarmos no véu desta indiferença e encontrarmos as causas de nosso distanciamento, para assim convertê-lo em união. Se a Salvação teológica reside em voltar a Sermos Um com o Todo Onipresente, Onisciente e Onipotente, unir-se aqui com quem está próximo de nós, sentindo sua condição frágil e sua íntima inserção no drama da vida, é uma espécie de salvação terrena? Talvez eu jamais consiga responder.

Hilton Boenos Aires

23 – Janeiro – 2016.

02 – Fevereiro – 2016.

Caruaru – Pernambuco.

Hilton Boenos Aires
Enviado por Hilton Boenos Aires em 17/02/2016
Reeditado em 12/06/2016
Código do texto: T5546610
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.