Dançar o Absurdo do Mundo

Comia sozinho de forma que há muito não fazia quando o absurdo das coisas me pegou, assim de surpresa.

Estranhos eram o garfo e a faca, e as formas que tinham de repente não me pareciam assim tão mais eficientes no manejo da comida. A questão de estar usando um garfo e uma faca me pareciam meramente um acaso, poderia, se houvesse nascido em outro lugar estar usado hashis. Garfos, facas ou hashis de certa forma não me pareciam mais eficientes que minhas próprias mãos.

Estranho me era o prato que sustentava a comida, e estranha a comida, pedaços de seres mortos, fatiados e postos em água fervente. Estranho me era o sentido do paladar e aquela comida antes tão boa agora me parecia indigesta.

Estranhas eram as mesas e as cadeiras e o fato de existirem mesas e cadeiras, e estranho era o relógio e a noção de tempo e de horários e de rotinas.

O tempo agora me era um vago conceito de alguma forma relacionado a rotação de uma rocha em torno de si mesma no espaço vazio, supondo-se essa rotação regular, o que não era.

Sabia que hoje usavam-se relógios atômicos, que mediam o período de decaimento de algum elemento que não me lembrava de cabeça.

Decaimento, período, onda, elemento, todos conceitos humanos criados para separar, arquivar e tentar de alguma forma explicar a estranheza do mundo, agora serviam como base para medição de algo ainda mais abstrato sem nenhum sentido físico como o tempo.

Um conceito que implicava regularidade. Mas nem mesmo o comprimento de onda do decaimento do átomo (de Césio? Acho que era esse o nome) poderia ser constante. E ainda que constante o fosse, que isso poderia dizer quanto a todos os outros fenômenos inconstantes do universo? Uma exceção usada para medir a regra? O constante era uma invenção da psicose humana, nada era igual, nunca, em momento algum, e todo o conhecimento acumulado me parecia uma explicação parva.

O próprio átomo de Césio não me parecia assim tão diferente de todos os outros átomos, mudando-se apenas uma quantidade de certas partículas positivas em seu núcleo. A questão do funcionamento dos átomos, mesmo o mais simples deles, continuava a ter mais perguntas que respostas, e ainda assim os usávamos para medir regularidades. Não poderiam existir tais coisas como regularidades.

Estranhas me eram as coisas e o fato de existirem. E os seres vivos ainda mais estranhos me pareciam. Ainda mais estranhas eram as pessoas, e mais estranhas ainda eram a sociedade e suas regras, e o fato de existirem sociedades e regras e de apesar de toda a estranheza do mundo, esses seres manterem suas rotinas e planejamentos e esquemas e hierarquias como se de fato existissem rotinas, planejamentos, esquemas e hierarquias.

Mas não haviam coisas, estavam todas ligadas numa única trama, num único corpo, por assim dizer, que trocava matéria e energia, por infinitos, contínuos e irregulares movimentos.

Estranho era esse corpo e seu existir, e toda a vida na Terra e a Terra em si, e sua estrela e os outros corpos do sistema solar, todos interligados, todos uma única coisa, assim como toda a galáxia, assim como a noção vaga de universo que temos.

Estranho é o infinito se ele existe. E ainda mais estranho o finito, se for o caso. Estranha era a existência quando o não-ser seria uma hipótese muito mais simples e bela.

Mas algo em mim gritava pela existência, e queria existir apesar de todo o absurdo que isso queria dizer. E assim, fazia graça da loucura que era o mundo, e ria-se dos homens e chorava-se dos homens quando lhes davam motivos de tristeza. Algo em mim não ligava para o absurdo e queria apenas aproveitar a viagem, já que ela existe. Nesses momentos continuamente renasço como uma criança. E a grama e as árvores, e o ar, e mesmo os carros e as pessoas, com suas roupas e posturas e etiquetas me parecem ao mesmo tempo surpreendentemente estranhos, mas também maravilhosos e divertidos.

E às vezes me pergunto se a busca de um sentido não é ainda mais absurda que a total falta de sentido. A música já estava tocando quando cheguei, não me convém querer conhecer a partitura e seu autor, se há algum. Basta que dance a música do existir. E dançando pode ser até que eu aprenda algumas notas. Mas não devo confundir as notas, a partitura ou mesmo a autor, com a música. A música não está na partitura, não está no autor, não está nas sucessões de compressões e expansões do ar. A música é algo além da soma das partes que a compõem. Dançar é compreender a música, mais do que conhecer sua partitura, suas notas e intervalos.

Gabriel Valeriolete
Enviado por Gabriel Valeriolete em 21/08/2015
Reeditado em 06/08/2020
Código do texto: T5354400
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