O Luto

Procuro

O autor desse peso

Dessa dor atroz

Que me cala

Que me esmaga por dentro.

Eu busco o assassino

O tiro é multilateral

Eu me canso

Eu me rendo

Entre tantos.

Eu sou a fome

A sede

O sonho evaporado nas favelas

Na dissecação dos excluídos

Eu sou o corpo destinado ao asfalto

Convocado

Demarcado

Setenciado.

E como ferida eternamente exposta

Eu sou a existência morta

Julgada em sua essência

Sem direito a resposta.

Brinquedo na tanatopolítica do Estado

Eu corro contra o meu extermínio

Contra o meu pré-destino obscuro

Adiando o meu aniquilamento

Minha ausência do mapa

Das ruas da cidade

Eu sou um rato

Eternamente preso na roda

Eu sou um trapo.

Verme eviscerado

Eu sou um nada

Um átomo podre constituído de dor

E de um espírito torpe.

Eu sou a parte invisível de um "todo"

Uma sujeira no estado "comum" das coisas

Sou parte de um estado criado para um mal-estado

Eu sou a poeira inquieta visitando as sombras

Em todos os cantos desta imundice

Que chamamos de mundo.

Há quem não resita e se venda em templos sagrados

Se prostrando em negação e afirmando

Cada vez mais a genealogia da exclusão

O niilismo de si mesmo

Dando continuidade ao jogo preferido de Deus

A roleta-russa dos excomungados.

Corpo ofuscado pela economia dos corpos

Eu nasci na escuridão dos meus pensamentos

Na penumbra que anunciou o dia

Na fragilidade da minha alma

Na ferida da enfraquecida existência.

E desde então,

Vivo tentando não me sufocar

Nadando contra a correnteza

Que me puxa para trás

E me assombra

Me devorando pelos pés

Me derrotando.

Eu vivo tentando não afundar

Em meu espírito entorpecido

Imerso em angústias e desesperos

Em meu cais silencioso e perdido.

Meu corpo foi negado a mim

Pelos donos da alma e da moral

E diante da minha morte existencial

Eu sou levado ao consultório

Eu sou diagnosticado pelo Capital.

A Indústria do bem-estar social

Me diz que sou um produto com defeito

Que eu não sou mais um "inteiro"

Eu não posso mais produzir

Eu não sou mais "normal".

Réquiem dos meus próprios desejos

Eu sou proibido de existir

Não lugar aqui para os que pensam

E os que pensam demais morrem

Miseráveis em suas existências.

Eu só tenho que obedecer

Cumprir com o que mandam

Obedecer sem jamais questionar

Me submeter

Me prostituir.

Estrangeiro num mundo vazio

Cheio de pessoas vivas-mortas

Eu não posso voltar ao paraíso

E anjo sem asas que sou

Vou me refazendo em castigo

E das cinzas da dor,

Eu recomeço.

Eu sou o meu próprio inferno

Eu estou condenado a mim mesmo.

Dia após dia

Eu vou respirando o ar mortífero da cidade

Me rotularam do que chamam de "mal do século"

Porque sou a sombra que permeia a certeza

Sou a pergunta que não cala

Um desejo que não se rende.

E me torno um imenso fantasma

Do meu próprio espírito

Um infinito túmulo metafísico.

Eu sou mal quisto, mal dito

A tragédia ambulante da vida

Intermitentemente decadente

Infinitamente descontente.

Eu sou um "nada" que incomoda o "tudo"

Eu sou o excluído que sangra mas levanta

Eu sou o inimigo público dos bons costumes

Eu sou um corpo-espírito

Dono de mim

Artista do que penso.

Eu tento me calar

Eu tento disfarçar

Mas nunca me vejo

Eu resisto sempre

Mas nunca venço.

E de hoje em diante eu estou de preto

De luto estarei até o fim do meu tempo

Porque o que restou do meu infantil mundo

Foi um eterno desejo fantasista

Que eu quero manter sempre vivo em mim

Sempre por perto.

O meu desejo é a minha morte

A minha vida que detesto

Mas o desejo move a vida

E move minha morte.

Mas eu sobrevivo

Eu caio, levanto e tropeço

Nos escombros do que sobram de mim.

E mesmo no escuro,

Eu permaneço firme

Enfrentando minhas dores de frente

Eu vivo do meu próprio resto.

Eu sou a noite sem fim

A dor que não se cura

Nem se mata.