Sem pressa de chegar

Hoje eu quero caminhar sozinho

Ouvir os meus pensamentos perturbados

Ouvir o barulho do trânsito das rodovias

E sintonizar o caos externo

Ao caos aqui dentro.

Não quero conversa

Nem discursos vazios

Quero a pureza do que eu penso

E o castigo por pensar tanto

Eu quero estar somente comigo.

Quero a política da solidão

Uma política a favor de mim

A favor do meu ar

Num mundo tão cheio de vazio

Eu quero ser a anti-política

Dessas eternas anti-relações

Tão sagrada em nossos dias.

Quero sonhar acordado pelas ruas

Em sintonia com os meus devaneios

Minhas ilusões insanas

Meus mais puros desejos.

Quero ser fiel a mim

E não esvaecer como poeira no vento

Como quem consome alguém

E ama os seus objetos.

Quero passear invisível pela estrada

Abandonado, rejeitado pelos lobos

Mas em paz com a minha consciência

Em pleno gozo com o meu espírito

De mãos dadas com a minha tristeza.

Homens discutem para estacionar

Uma criança se perde no shopping

O pai dela olha uma vitrine

E sonha em voltar a jogar no seu time.

A mãe olha um vestido

E delira em poder se “enquadrar”

Se “adequar” a ele.

A criança perdida,

Chora sem parar.

Hoje eu não quero pegar o bonde lotado

Lotado de pessoas desligadas do mundo

Conectadas em seus mundos virtuais “reais”

Concentrando todas as suas frustrações

Em um aparelho celular.

Desligadas de si mesmas

Em conexão com o que não há

Elas se refugiam de seus desesperos

E acreditam nesta loucura

Nessa epidemia histérica

Em se auto-enganar.

Enquanto eu puder conversar

Enxergar e ouvir a mim mesmo

Eu não estarei perdido

Eu não irei me diluir no ar.

E eu pago o preço

Do crime cometido

Do pecado e do castigo

De ser quem se é

Por inteiro.

Não quero ser a metade de mim

Que asfixia a existência da outra

Não quero adoecer como a massa

E me esquecer que um dia

Eu sonhei, eu brinquei

Eu sorri e chorei.

Eu estava vivo

E permaneço vivo.

Vejo os carros velozes por dinheiro

Pisando no acelerador

Contra o tempo

Contra todos

Contra o mundo inteiro.

São ovelhas disfarçadas de lobos

São lobos devotos do sistema

São robôs desligados do mundo real

São arquétipos perfeitos

Destruidores da Natureza

E de si mesmos.

Almas vendidas

Espíritos esquecidos

Mentes vazias

Todos obedecem os sinais

E vão em frente.

Seguem com o mesmo destino

Os de se arrepender

Quando não há mais nada para se fazer

Nem mudar o roteiro

Nem voltar ao passado

Nem iniciar um novo começo.

Todos estão cegos

Todos estão sujeitados

A perderem o contato

Com suas consciências

Com o mundo real

Consigo mesmos.

Todos foram vendidos

Desde o batismo

Até o emprego garantido.

Todos almejam o sucesso

E não medem esforços para isso.

Todos estão cegos

De tanto enxergar o absurdo

E de escudos ilusórios vão vivendo

Até se perder na massa

Contida de ódio e de raiva

Até o fim de tudo.

Dia após dia alimentam

Seus desejos mais obscuros

Com suas personas vão encenando

O que deveria ser o mundo

Num discurso dissimulado

Num logro sem tamanho.

Existência adoecida

Procuram em carreiras de pó

Em drogas com bula

Ou televisores ligados o dia inteiro

A válvula de escape

Numa selva de pedra

Cheia de muros erguidos

Para escapar as sombras de si mesmo.

Todos estão doentes

Carentes de afetos reais

Mas todos estão calados

Ressentindo tudo

Todos os dias

Num círculo vicioso

Carregando suas pedras de Sísifo.

Para suportar mais um dia

Um gole a mais,

Uma ultrapassagem

Uma morte,

Um a menos no caos.

Livre arbítrio que é prisão

Eu sigo amando minha solidão

Sem se perder de mim

Ouvindo o gorjear dos pássaros

As ondas da infinitude do mar

Que formam uma bela canção de ninar.

Então eu durmo sem me deitar

E percorro o meu rumo

Sem avatares para me simular

Sem aparelhos para me conectar

Ao mundo ausente de presença

Ao mundo que é o fim de quem chega

Sem pressa de chegar.