Nunca somos o que somos
Me convidaram para ser feliz
E eu recusei.
Mas me fizeram todo tipo de demonstração
Para me ludibriar.
Queriam enfeitar o meu rosto
Maquiar o meu semblante
Medir o meu sorriso
Reorganizar o meu retrato na estante.
Depois queriam editar o meu espírito
Criar um avatar para a minha alma
E um perfil fake de mim mesmo
Em minha rede anti-social
De amigos puramente virtuais.
Disseram em bom tom:
Ornamente sua vida!
Tenha um corpo épico!
Seja capa de uma revista
De preferência, de sucesso!
Tenha uma casa bem decorada
Vista uma roupa bem estilosa
A vida é glamour!
A vida é de se jogar fora!
Ah, tenham filhos brancos
De preferência de olhos azuis
Malhados, bem portados
Sobretudo, bonitos
E imbecilizados.
E prometeram-me saúde
Vida a longo prazo.
Me deram receitas azuis
Frascos e frascos.
Em dias nublados,
É só engolir umas cápsulas
E o arco-íris voltará
E você verá que a alegria
Está ao seu alcance
Sempre que precisar.
Sua felicidade tem prazo
Não se esqueça,
Ela tem seus dias contados
Cronometrados
Desde o primeiro comprimido
Até o congestionamento no trânsito
De volta para casa
Com o seu carro do ano.
Então não se esqueça de ler a bula:
Seu prazer é regulado
Dominado
Controlado.
Me deram até um celular novo!
De ponta, de última geração
Mas tinha que assinar um contrato
A venda da minha consciência
Por cada aparelho usado.
E não poderia cancelar depois
Uma vez concordando
Sempre vende minha ação irrefletida
Como quem dirige dormindo
Um caminhão num asfalto
Sem iluminação.
Sem poder rescindir o concordado
Eu prostituiria minha ação
Meu pensamento que já havia sido domado
Estava pálido e morto junto de minhas emoções
E da repetição de atos impensados.
Minha vida não era minha
Estava tudo no contrato assinado.
Entregaram-me uma casa
Totalmente decorada
Um verdadeiro cenário para a felicidade
Uma vida inimaginável.
Mas minha mente estaria se prostituindo
E eu já não saberia se o que eu sentia
Era verdadeiro ou falso.
Minha vida era real ou fictícia?
Me garantiram que se eu não gostasse
Que era só comprar uma vida nova!
Outro lugar
Outros filhos
Outra pessoa
Outro persona.
Mas o bom cenário tem que ser mantido
Para o eterno circo reinar.
Filhos enfeitam a casa!
Me disseram,
Coloquem cada um no seu lugar
Senão fica feio na foto.
E sorriem!
Eu não quis saber de mais nada
E os expulsei-os de mim.
Mas os meus vizinhos gostaram
E de felicidade querem viver.
E todos os dias eu os vejo sentados
Ao redor da margarina do comercial
Que dita uma vida estética sem intervalo
Sem férias ou descanso semanal.
E de in-felicidade eles vivem
A fazer todos os dias
O mesmo ritual.
Os seus filhos modelos
Aproveitam a cegueira coletiva
E matam os malabaristas no sinal.
É o Caos reinando através da falta de ética
Enquanto a estética faz o carnaval.
E todos posam sorrindo
Diante de suas câmeras celulares
Para a manutenção de uma vida
Puramente virtual.
Já não existe mais ‘nós’
Todos juntos somam ‘um’
Somos agora o que o parecemos
Mas nunca somos o que somos.