HORAS EM SÉPIA

Só às vezes, em meio à abstração do tempo, eu ainda me lembro dele, porque ele conversa comigo..

Eu não sabia, (e ele também não) que os ponteiros mudos da poesia nele correriam velozmente qual o tempo em silêncio, contando tudo que não precisava ser contado por ninguém.

Ele era inanimado apenas para os outros...e nós éramos cúmplices da sapiência do aparente mutismo das coisas.

Sim, porque ele era quem era, eu sabia de tudo, e eu era só criança, apenas uma criança diferente das outras, que olhava objetos inanimados e inexpresivos, mas sentia vida neles.

Eu conversava com as paredes, com o amigo urso imaginário, com a boneca que soltava beijinhos ocos, com as flores,com os pingos da chuva, com as nuvens (vez ou outra alguém me gritava para descer delas!) e eu sabia, sei lá porque, que naqueles objetos todos existia histórias pulsantes, figurações inimagináveis que comigo percorreriam todas as horas da minha tenra existência.

As coisas, todas elas, para mim tinham alma.

Devia ser maluquice de criança...eu achava.

Mesmo parado, parecia atônito, ele me inspirava algo, embora eu sequer soubesse o que era inspiração.

Também sei que era eu a "expert" em horas porque ele, coitado, era velho e empoeirado, desbotado na sua arte robusta, parecia cansado e aposentado do seu ofício tão repetitivo.

A despeito das aparências, eu o achava lindo e glamuroso e a mim tão somente me bastava entender que ele não estava morto,a despeito de apenas eu o ouvir respirar.

Nós sabíamos que muita vida já havia passado por ali, todavia, mudo, parecia eternamente quieto a me revelar todas as histórias que, em silêncio, ainda giravam nele.

Eu as ouvia uma a uma...e ele gostava de mas contar todas.

Depois de adulta, compreendi a sua perene mensagem, talvez a sua lição, e conto que ele foi meu sensível professor, um anjo que me ensinou que versos saltam da profundeza do que desconhecemos existir, independentemente da existência das horas vivas ou mortas.

E foi assim que um dia, de repente, ele badalou em mim.

Soou-me em segredo todas as rimas possíveis das suas horas trabalhadas em sépia, as sonetadas em grande estilo e as embargadas no fundo dos versos brancos que só pareciam esquecidos.

Tomou cor...

E como milagre, desenferrujou seus ponteiros e voltou a marcar todas as horas exatas, as audíveis e as inaudíveis ao descaso.

Eu e ele, o velho carrilhão italiano morador do canto da sala da vovó, então soamos juntos para o sempre de todos os segundos do atemporal, porque, afinal, já éramos poetas de todas as coisas e de todas as horas eternas, as que pontuam sem ponteiros.

Soube, dia desses, que em época difícil da família, seu destino foi ser leiloado para um museu e que ninguém nunca mais soube dele, mas eu sei que faz poesia até hoje, simplesmente porque poeta não morre nunca.

Poeta dorme só para sonhar...e fazer versos inéditos de vigília urgente.

Vez ou outra me lembro do seu cansaço, e ele soa suas mesmas horas de sempre ao meu coração.

Foi assim que, ainda bem cedo, entendi o que era ser poesia por vocação... e por missão.