​Senna: poesia e velocidade

 
 Sabe um daqueles gênios que surgem apenas de tempos em tempos, desafiando nossas razões e acrescentando alegria e emoção em nossas veias e em nossos corações? Pois, entao! Ayrton foi um desses. Desafiou certos limites da engenharia física da velocidade. Sabia que podia ir muito mais além daquela experiência de guiar carros vorazes voando baixo nas pistas. E assim o fez: desconstruindo algumas das limitações humanas e ultrapassando as barreiras da mais pura emoção.

Primeiro, ainda muito jovem, Senna se pos a dominar a chuva, esta implacável e temerosa chuva. E o fez como um poeta da velocidade em busca da perfeição.


Depois, fez o que muitos de nós pobres mortais jamais poderíamos sonhar: dominou curvas e retas, pneus e motores, carros e máquinas, vitórias e sonhos (...) Senna não chegou a construir, nem montar os seus próprios carros como fizeram, em outros tempos, grandes ícones da Fórmula 1, tais como Ruan Manuel Fanjo, Keke Rosberge, Niki Lauda, Nelson Piquet, Nigel Mansell. Pelo contrario, desconstruiu e desmontou quebra-cabeças de lógicas inimagináveis, contornou curvas tão abstratas e acelerou retas tão inesquecíveis que deu um verdadeiro pulo imortal para além do seu tempo, e pôde assim tecer uma imensa manhã de domingo e glória. Uma manhã poética, vitoriosa, inesquecível...

Senna, este vitosioso Senna, tornou-se um grandioso poeta da velocidade e das pistas. Dominava carros, dominava o tempo, submissa a ele era a propria velocidade, em frações de segundo  manobrava-se pelas entrelinhas do vento. Em versos de coragem, com sublime arrojo, Senna avançava, derrapava, corria em direção ao seu horizonte e transformava assim o medo na mais perfeita combinação de ousadia e equilíbrio.
E a genialidade de Senna estava em combinar todos esses ingredientes em tempero forte de uma enorme dose de paixão! Sim, e contagiava as massas com seu momento supremo e sublime no mais alto pódio. Lá irradiavam o amor, a alegria, a emoção, a paixão e o êxtase! A bandeira tremulava, Senna delirava, em lágrimas de emoção diante de vitórias construídas com garra e determinação. Eternizava-se naquele instante a felicidade, esta pura e eterna felicidade que surge inflamada no peito ao se alcançar o nobre sonho.

Sem dúvida, diante deste grande poeta chamado Ayrton desfilaram em seu tempo muitos versos e roncos de motores em baixa e alta rotatividade, revelando a face mais pura da engenharia poética em movimento.
Nas pistas, Senna era o próprio transcender do êxtase : encantava uma nação inteira, que junto a ele vibrava em lágrimas de emoção, em gritos de vitória & de alegria em ver o Brasil no topo do mundo. Sublimava e encatava com rimas e cores de azul anil nas manhãs de céu glorioso, em domingos de sol ou em pistas de chuva... Sublimava e sonhava, transformava e fazia... da alegria poesia, vertendo angústia e expectativa em contentamento.

Desafiava a poética da relatividade, a fisíca da ultrapassagem, a razão das curvas e da emoção (...) Empreendia as rodas contra o impossível vento. E empreendia com arrojo!


Assim, foi contra o veterano campeão francês Alain Proust, seu companheiro de equipe, entre 88 e 89. E mesmo depois, Senna rivalizou com Proust uma das mais longas e acirradas disputadas pela vitória, pelo título, pelo prazer de ser o melhor daquela geração da Fórmula 1! E os limites daquela disputa quase não encontraram fim na linha do horizonte, não fosse o lado humano que no final da reta da vida falasse mais alto. Senna se despediu do amigo Alain de modo fraternal, confessando a saudade dos tempos de Senna x Proust. Mandou um recado pelo rádio do carro a Alain, no último treino antes de ele próprio (Senna) morrer... e isso ecoou como poesia pairando no ar, ressoando até hoje no coração do francês. Quem não se emocionaria?

Isto era Senna! Surpreendia-nos a todo instante! A rivalidade dava lugar à generosidade de um coração pulsante, que falava mais alto.

Senna sempre fôra assim. Nas curvas e retas mais inesperadas brincava com a psicologia de seus oponentes. Brincava e desafiava a todos com suprema maestria. Foi o que ele mostrou ao mundo diante de Damon Hill
  sob o olhar atento das gotas de chuva, em Interlagos: Senna fez mais uma de suas maiores ultrapassagens. Depois do milagre em Donington Park, em 1993, na Inglaterra, após ultrapassar oito carros na primeira volta, e vencer de ponta a ponta aquela corrida, havia um milagre a mais para acontecer, e o Brasil inteiro triunfante assistiu. Foi ali...
 Naquele instante... Damon Hill estava logo à sua frente, e Senna mais uma vez preparava o bote. Calculou com a leveza das asas abertas de seu carro a mais nobre manobra: genial! Tal como uma águia a mirar para além do que a vista é capaz de alcançar, leve sob os céus e sob as águas a pairar, encontrou uma forma de driblar o seu adversário. Ali, até mesmo um dos grandes gênios da bola, sim, Mané Garrincha, ele mesmo, parecia vir à cena para driblar junto com Ayrton. E naquele instante, em frações de milésimos de segundos, dois gênios estavam prestes a se encontrar em um só instante e em um só milagre.

Senna jogou tudo, até a própria sorte em cima do erro de seu oponente, e assim como o gênio da bola, fez que ia, mas não foi. Pula pra cá, pula pra lá... até que Hill, titubeando, cai para um lado, na tentativa de fechar as portas para Ayrton Senna (...) que com a mesma leveza, graça e rapidez de Garrincha, fez então um daqueles dribles verdadeiramente eternos, nobres, geniais, descorcentantes, inimagináveis... debaixo de chuva... Ultrapassou Damon Hill pela breve esquerda do impossível e pela fresta da cortina mais ousada da vitória (...) Senna (este implacável Senna) abriria as cortinas da sorte de forma majestosa e radiante para o delírio do público de um Brasil inteiro de pé.

Experimentava ali naquele instante o que os nossos poetas da bola e os nossos grandes gênios da poesia eram mestres em experimentar: o instante da transformação poética em vil alento, exercendo dominante fascínio sobre os olhares atentos e devolvendo às rimas o doce sorriso e sabor da felicidade.


E sempre foi assim: o grande mito Ayrton Senna tinha um gosto predileto por desafiar, ousar, dar o seu melhor... e vencer! Vencer aquilo que para nós humanos parecia impossível. Vencer os grandes imperadores da vida, na forma de um samurai. Assim, foi contra o poderoso chefe da Fórmula 1, Jean-Marie Balestre. Deu-lhe o troco merecido, após este roubar-lhe descaradamente e de forma desleal, em 1989, um título de campeão do mundo! Desafiou, então, Balestre e deu-lhe o troco em moeda ainda maior, mostrando ao planeta que antes de ser brasileiro, era um ser humano glorioso e que em suas veias corriam doses valiosas de valores inestimáveis. 

E Senna foi muito além do que as pistas lhe permitiram. Despojou-se em sua humildade e correu para salvar vidas, como fez ao saltar de sua McLaren para salvar a vida do piloto Érik Comas, no GP da Bélgica de 1992, em Spa-Francorchamps, palco do GP da Bélgica. Quando Comas bateu fortemente com sua Ligier na curva Blanchimont, ficando o seu carro atravessado no meio da pista, Senna então parou imediatamente sua MacLaren, em meio a uma névoa de fumaça e, literalmente, saiu correndo para ajudá-lo. Senna, ao perceber que o piloto estava desacordado com o pé no acelerador, desligou o motor para evitar uma possível explosão. Na sequência, ainda segurou a cabeça de Comas em uma posição confortável, tendo a certeza de que o piloto respirava (...) tudo a tempo de a equipe médica chegar ao local.

Nosso eterno grande herói construiu assim uma trajetória de vida com valores praticamente inabaláveis, de luta por conquistas e de ajuda ao próximo. Deixou a mensagem da vitória e da garra. E, sobretudo, a da possibilidade de sonhar. Sim, porque até mesmo sua primeira vitória no Brasil, em 1991, não foi fácil: perdeu todas as marchas de seu carro nas últimas voltas (restando-lhe apenas a sexta marcha), arrastou sua MacLaren, estando em primeiro, até a bandeirada final (de forma inacreditável)... e, ao final (ainda dentro do cockpit de seu carro), desmaiou de tanta exaustão, sofrendo ali mesmo um espasmo muscular. Mesmo assim, subiu corajosamente ao pódio e ergueu de forma mais do que especial e vibrante a bandeira do Brasil, a taça da vitória. E que vitória!

Sim, Senna, nos deixou essa mensagem da vitória e de orgulho de ser brasileiro, entre momentos de 
lágrimas e champagne, porque com ele e com tantos outros de nossos heróis (Mané Garrincha, Machado de Assis, Pelé, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves, nossos atletas paralímpicos, tão pouco mencionados, e tantos outros) um Brasil inteiro teve a oportunidade de sonhar com a esperança.

Pois foi assim que o nosso grande herói e poeta das curvas foi tecendo com brilho e fulgor nossas eternas manhãs... Fazendo da velocidade uma forma de sublimar nossas profundas mazelas sociais, presentes nas desigualdades vistas em nosso país e em nossas tristezas cotidianas. Sublimou muitas de nossas angústias, senão as de milhões de cidadãos brasileiros, transformando-as nos mais belos voos de alegria, de grandiosa e de pura emoção, de esperança e de eterno primor, esplendoroso primor poético da vida.
Ayrton Senna, com seu capacete verde-amarelo, carregando com orgulho as cores de seu país, nos ensinou uma nova sinfonia do patriotismo e do orgulho em ser brasileiro. E dessa forma a lenda, o herói, o mito nos permitiu voar longos voos, belos, majestosos, brilhantes, sublimes (...) e assim se fez, eterno, entre céus e terras, entre mar e chão, pelo horizonte eterno da emoção...


Cenas do filme Senna: o brasileiro, o herói, o campeão
Official Trailer
Fonte: 
http://www.youtube.com/watch?v=QOQLeqRcgKc


 
Entre céus e poesia
Enviado por Entre céus e poesia em 01/05/2014
Reeditado em 01/05/2019
Código do texto: T4789942
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