[Bêbado Olhar]

[Crônica à-toa - cuidado, texto longo à frente, não dá para ler no elevador!]

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Encostada a um canto da casa, raramente ela entrava no meu campo de visão. No frege dos meus vertiginosos dias de crescimento, eu passava correndo pela sala quase sem dar por ela. Aquela vassoura de palha de coqueiro era usada, de quando em quando, para vasculhar o telhado, tirar as teias das aranhas, os picumãs. O seu cabo muito comprido impedia o uso corriqueiro que têm todas as vassouras comuns, e assim, a preservava do desgaste rápido.

Hora qualquer, minha mãe, num vago passeio do espírito, olhava para o telhado — "Nossa... há quanto tempo...!" E aí, era dia de limpeza geral: o vassourão do cabo comprido entrava em ação; deixava as telhas, os caibros, as ripas limpinhas, eliminava aqueles incômodos avisos da passagem do tempo. O telhado ficava limpo, limpo como naquele distante dia em que fora terminado.

Mas então, depois da limpeza, eu não mais podia sentar à mesa como o meu copo de café-com-leite e contemplar o balanço suave que o vento, ao passar pelas frestas das telhas, fazia nos picumãs amarelados... E nem havia mais as teias de aranha, as sentinelas do tempo... pois se estivessem ainda lá, elas eram um sinal claro de que já se passara muito tempo... — "Nossa... há quanto tempo...!"

O meu olhar-criança não apenas olhava certas coisas da construção do meu mundo; o meu olhar parece que bebia, ou embebia-se das imagens... O meu olhar me tirava de mim, fazia-me sumir; eu nem era mais tocável pelas circunstâncias, pelas habitualidades... Assim, era a anulação do tempo na muda contemplação do balanço dos picumãs ao vento.

E depois, experimentar o choque de realidade causado pelo seu algoz, a máquina-do-tempo que era o tal do vassourão! Para mim, aquela varrição fazia retroceder o telhado no tempo, fazia-o voltar à sua condição inicial, ponto zero do eixo de seu tempo... E no seu chiado macio, o vassourão levava-me numa viagem fantástica até à visualização do que eu não tenha vivido e visto: a construção do telhado...

A imaginação voadora no tempo é mesmo coisa de criança... será!? Deve ser... Tempo deforma? Um fato simples como o entortar ao vento do fio de água que escapava da torneira mal fechada, solitária no meio do quintal, era uma tortura de consumição do meu olhar... ali, era o desvio das coisa que deveriam seguir retas, mas não seguiam pela ação externa do vento e do tempo. Mas tempo e vento não são só rima não, é um tal de um cria e o outro esculpe, sem cessar...].

Ah... mas então quer dizer que eu tenho um olhar assim doente, ou bêbado das coisas que contempla! Só eu? Acho que não... eu e todo mundo vivo!

E não são somente os vivos que comparecem nos meus filmes; mas também os mortos que estão a bordo de mim, isto é, da “barca do meu Passado”. Estes voltam com a mesma face que tinham ao partir, pois para eles o tempo não passa... Voltam, e agem, em surdina, nos meus sonhos... ou até mesmo no campo do meu bêbado olhar!

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[Triste Desterro, 22 de maio de 2013]

Carlos Rodolfo Stopa
Enviado por Carlos Rodolfo Stopa em 22/05/2013
Reeditado em 22/05/2013
Código do texto: T4303091
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