Reflexão

Tenho milhões de irmãos lá fora, muito mais que um grande exército e muito mais que as flores da primavera. Eu passo por eles e eles passam por mim; e seus olhos passam muito longe dos meus. O mundo inteiro é uma geladeira fria, de estranhos renegando a porta que nos leva até Deus.

Olho lá fora e o que vejo são pardais, na calçada fria da praça. Olho a chuva que cai como um lamento sobre o asfalto e vejo as pessoas fugindo da sua dor. Lírios sobre o chão que a humanidade pisou. Olho pra você, e nos seus olhos vejo os filhos que ainda não tive, vejo os conselhos que ainda não dei. Vejo-me fazendo o que ainda não sei... E depois de alguns minutos meu pensamento desabrocha num sorriso, assim meio tímido, distraído, quase longe e indefinido. Demorei quase uma vida pra descobrir que este sorriso tinha nome de felicidade, mas hoje eu sei a raridade única de tal simplicidade.

Existe um batalhão de inimigos lá fora e as pessoas já não saem nas ruas. A proteção às vezes nos mata mais cedo e o perigo às vezes nos congela o medo. Tenho mais medo de mim que dos milhões, que estão lá fora.

Somos duas vidas, dois pensamentos, dois contrastes. Dois amores quase iguais, mas nunca saberá quem eu sou de verdade. Eu também nunca saberei quem é você. Somos labirintos gigantescos, nos levando para todos os lugares, já existentes ou não. Tenho um fogo dentro de mim queimando dia e noite quase por sofreguidão... E ainda assim sou um vulcão adormecido, durante décadas.

A eternidade passou por mim e eu vi quando ela te levou, e fez eterna a essência do seu ser. Fiz a lava adormecida se chocar no gelo pálido, como que num murmúrio de prazer e lamentação. Nós descemos um degrau a mais, antes de voar como um falcão. As montanhas se calaram e onde está o grito que exclamei das profundezas do coração? Onde está o eco infinito da sua voz na sala de estar chamando-me para ver a única estrela que sobrou?

Tenho milhões de irmãos lá fora e são como dragões pisando com ira sobre mim. Todos estão atrasados, estressados e machucados demais pra dar atenção. Vejo a humanidade como um bando de dragões em colisão. A multidão se calou por um minuto e apenas em um segundo toda uma vida pode mudar. Por que vejo o mundo inteiro se acomodando, se temos a missão de incomodar? Palácios e mais palácios nas calçadas e existe um rei em cada esquina, com seus olhares fatais tentam mostrar o seu poder, mas existem flores pequenas grandes demais pra se deixarem vencer. Ainda assim todos são reis de um reinado sem razão. Escravos do que não têm. Suicidas do coração.

Susana Torres
Enviado por Susana Torres em 22/06/2012
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