Para Enquanto a Habilidade Não Vier

“A vida não tem forma – conecta-se por lapsos de tempo, acontecimentos simultâneos em lugares separados, hiatos de memórias. O melhor teatro é um experimento dessas tensões”.

Arthur Miller

Eu não posso dizer “eu sou”, não posso constatar o fato de que “eu sou” se não for em relação ao outro. O que “eu sou” então? Eu não sou, concluo, “eu somos”. Somos uma possibilidade de um infinito inserido no que é finito, que são os nossos próprios limites. Agora eu sou apenas uma graduanda em Filosofia, uma professora de Literatura, uma mulher que recentemente cortou seus cabelos e os tingiu de louro. Superfície. Não lhe ofereço nenhum acréscimo espiritual, nenhuma possibilidade de encontro espiritual, apenas meras informações para o seu juízo sintético, mais algumas informações em um milhão nesse mundo completo de “sociedade em rede”. Essas informações podem deixar de ser supérfluas se acrescentarmos algumas doses de “lirismos lusitanos”, que também faz parte de minha origem, Rezende que sou, um pouco do africano que foi tirado a força da sua terra, algum outro estrangeiro que veio tentar a vida no Novo Mundo... Provavelmente, amigo, se você teve paciência o bastante para vencer essas mal escritas linhas e chegou até aqui, você já tem alguma identificação original, brasileiro, oriundo de um país mestiço que é. Caso não, não tem problema, a questão não é essa, não a de se identificar ou não com esse “eu”. A questão é se você aprendeu que é possível a união do dionisíaco e apolíneo num espírito harmônico, nem por isso previsível. Ora agressivo, ora sensível e chorão, racional, alienado, adepto à força e dotado de força bruta, esperto, bobo, indecente, recatado, inebriado pela música, sólido pela lucidez, sonolento, ativo, indivíduo, coletivizado, igual a ninguém, igual a todo mundo, sempre só – embora tenha se deparado com a solidão poucas vezes - indelicado, cortez, chato, encantador, medíocre, raro, lacônico, orador. Viver é um risco, a incerteza e a certeza são riscos. Nos conhecermos é um risco. É quase um apelo antinatural à razão, pois, a fim de encontrarmos uma certeza, uma definição, mergulhamos no intraduzível, no não conceituável, e quando tentamos definir o outro, o “nós”, colocamos a nossa própria inabilidade de entendimento através da conceituação em questão, da objetivação, então podemos nos deprimir por uma inaptidão ao trato com o que é diferente, incompreensível, e sofremos com isso, quem sabe por ignorância, pois poderíamos nos deslumbrar com essas criaturas tão versáteis que somos ou que podemos ser. Mas talvez não exista um meio melhor que este, o contato com seres de toda ordem, para expandirmos nossos espíritos.

Deixo uma poesia linda, daquelas que só ampliam o seu sentido à medida que nos tornamos mais experientes. Foi encontrada em um livro do Roberto Freire, Ame e Dê vexame:

“Se faço unicamente o meu

E tu o teu

Corremos o risco de perdermos

Um ao outro e a nós mesmos

Não estou neste mundo para preencher tuas expectativas

Mas estou no mundo para me confirmar a ti

Como um ser único para ser confirmado por ti.

Somos plenamente nós mesmos

Somente em relação um ao outro

Eu não te encontro por acaso

Te encontro mediante uma vida atenta

Em lugar de permitir que as coisas me aconteçam passivamente

Posso agir intencionalmente para que aconteçam.

Devo começar comigo mesmo, verdade;

Mas não devo começar aí: a verdade começa a dois”.