SÓ PRA MIM

Durante toda a minha infância eu desejava consumir sozinho uma lata de leite-moça.

Não que eu não pudesse, vez e outra, experimentar uma dose,

Mas uma lata inteirinha só pra mim...

Quando completei quinze anos passei a me perguntar:

- Por que eu não compro uma lata de leite-moça inteirinha só pra mim?

Então percebi que esta possibilidade não mais me suscitava suspiros,

Não fazia o tempo parar nem desaparecia com a terra sob meus pés.

Não demorou para que eu acreditasse que os sonhos tinham prazo de validade.

Aos trinta, cismei de ter uma piscina enorme para os dias de sol.

Na época o orçamento só permitia uma banheira, mas eu sonhava.

Sonhava com uma piscina inteirinha só pra mim...

Já cinquentão, ao lado da piscina recém inaugurada dos meus sonhos

Percebi que ela era ótima...mas para jovens sarados e bronzeados.

O que me apetecia naquele momento era um chalé nas montanhas

E tomar chocolate quente em frente a uma lareira.

Uma lareira inteirinha só pra mim...

A lareira veio trinta anos depois.

Hoje tive uma idéia octogenária:

Ir ao mercado escondido da enfermeira antidiabética

Que há quinze anos pago para tornar acre minha velhice

Comprar uma lata de leite-moça inteirinha só pra mim...

Consumi-la de uma vez em sonorosas goladas...

Com os olhos fechados de prazer, limpar a boca usando as costas da mão,

Bater três vezes na barriga e arrotar uma vida inteira de privações

Em que um menino em mim latumiou incessante

Por uma lata de leite-moça inteirinha.

Latumiou incessante a vida inteirinha...

...só pra mim.

Saulo Palemor
Enviado por Saulo Palemor em 10/02/2011
Reeditado em 25/01/2017
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