INEVITÁVEL

É tão difícil ser real, existir de fato, nascer, crescer, amar, perder.

Seria muito bom ser letra escrita por outra pessoa, sem preocupação em ser grande ou pequena, contumáz, irônica, verdadeira, injusta, infiel, romântica, cruel, gorda, magra, fiel, feliz ou incapaz.

Eu poderia ser apenas amor fulgáz, fuga espetacular, canção de ninar.

Chuva forte, tempo quente ou garoa preguiçosa e brisa viajante.

Eu poderia ser órfã sem chorar, sem sentir saudades vãs, evitando o inevitável. Por que a vida real oferece exatamente isso - inevitabilidade. E a certeza da impotência dói mais a cada página que não posso virar, a cada final feliz ao qual não posso chegar.

Mas se eu fosse só uma personagem inventada por alguém, eu talvez fosse bela, amada, feiticeira. Se eu fosse letra ideada por alguém, talvez eu pudesse, em um final qualquer, viver aquela tola, mas tão desejada frase: "e foram felizes para sempre." Ou quem sabe eu seria letra animada fazendo uma festa dos sentidos todos os dias, sem ter que enfrentar consequência alguma. Eu poderia ser riacho, oceano, cachoeira, asfalto ou terra, trilha encantada, fada ou princesa, nuvem branca, porta aberta, luz apagada, folha verde, pássaro livre. Talvez montanha, corcovado, cimento na calçada, banco de namorado, beijo de apaixonado. Areia do deserto, praia ensolarada, quem sabe o próprio Sol. Poderia ser madeira, arma de fogo, faca afiada, atiradeira.

Amiga, irmã, companheira. Poderia de novo ser filha. Ou ilha. E que tal seria ser o tempo, ou o próprio esquecimento? Até Deus eu poderia ser, sem culpa. De tudo que há no mundo, eu poderia ser tudo. Até o próprio mundo. Eu só não haveria de querer ser inevitável.

Isabel Damasceno
Enviado por Isabel Damasceno em 20/05/2009
Reeditado em 08/06/2011
Código do texto: T1605593
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.