do inferno
não sei se é justo com deus
que eu vá para o céu,
se o céu é isso que eu ouço dizer.
dizem que há deus em um trono e anjos benditos.
eu, que sempre fui maldito,
que orei sempre torto,
que não pedi os pedidos mais comuns,
que preferi agradecer sem dizer
“obrigado”;
eu não mereço ir para o céu,
e nem deus me mereceria lá.
eu, que não vou à missa para aprender a adorar,
— ninguém —,
nem o padre nem o bispo,
nem o ministro,
nem a santa do altar,
— que lhe gosto só de olhar, de bonita que ela é,
mas não de a adorar...
com quem às vezes converso até mesmo,
mas que para mim está espalhada
nas estrelas
e nas pedras, e nas correntes
dos rios,
e nos navios distantes que não vejo senão nas pinturas
e nos filmes,
mas que já me deixam saudade,
uma vaga lembrança constante, às vezes maciça,
de que a vida vai se perdendo todo dia.
eu vejo a santa do altar e fico cheio de alegria,
porque alguém sonhou com as nuances de seu manto azul.
mas a minha alegria vem da alegria
de se poder sonhar,
e porque sou homem e sem querer posso fazê-lo.
penso que é tão bonito ser homem
e mulher
que não me importo em ir para o céu. vou para o inferno se necessário for.
mesmo lá continuarei pensando em deus e sonhando,
e me alegrando de haver tanta coisa que se sonhe:
filosofia, história, matemática,
literatura...
pensando bem, será impossível que o capeta,
sendo o inferno aquela coisa ruim,
que o diabo, se assim preferires chamá-lo,
que lúcifer me prenda lá. meu sonho vai me levar longe
demais.
no fim não pertencerei nem ao inferno nem ao céu.
como é que deus vai poder me proibir de pensar em coisas para além dele
para que eu não quebre o juramento de sua lei impostora...?
ou imposta, melhor dizendo.
como é que deus vai me proibir de querer mais
se nem eu próprio o consigo?
está em minh’alma o fazer,
e ele que a fez.
como é que deus pode ser tão estúpido quanto as religiões dizem,
quando dizem que deus é homem e que tem traços humanos
ou que é luz e tem leis obscuras,
ou que é tirano, ou que é político e faz promessas
materialistas...?
ai, como é imbecil acreditar que deus
seja o mesmo que os homens!
e que homem ignorante
é deus,
— sendo deus o que os homens dizem!
não, não é justo com ele eu acalantar-me em seus braços,
quando para mim ele é pesadelo, esse deus dos outros.
o meu deus é mais suave.
o meu deus, ele é como um passeio num longo jardim,
em que há prédios e poses,
e pôsteres, e árvores,
e netuno, e júpiter, e plutão,
e sócrates,
e maria, e marta,
e poetas, e estilistas, e pintores, e açafrão...
deus para mim me leva em seus braços
agora e depois
sem me pedir nada.
sem me provar, sem me exigir.
ele é dia e é noite.
ele é deus. e deus só pode ser tudo.
ele nem pode ser justo,
ele apenas é.
portanto, que eu vá para o inferno,
ou que eu não vá para lugar nenhum.
que deus me castigue com a inexistência, com a dissolução.
para mim será um prazer não ir para céu nem para inferno,
apenas ungir-me com as coisas que vivi em vida.
apenas morrer.
morrer
e não dever nada a ninguém.