As águias

Quando minhas preocupações

Cabiam na minha rua

No meu quarteirão, no meu bairro

E a luz laranja do sol se desvelava seminua

Filtrada pelos véus dos cirros

Do céu rajado

Vi chegar como ameaça

De onde o horizonte desmancha

E onde o céu com a terra se congraça

Duas sombras, duas manchas

Duas jovens águias

Que em minhas escápulas pousaram

Aninhadas nos meus ombros

Em minhas espáduas se instalaram

Não havia ninguém

Que de ficar as demove-se

Aquelas bestas-feras

Cada garra à minha carne arpoa

Seus bicos de torniquete

Estalando como quem caçoa

Dos patéticos homens tão aquém

De toda sua espera

Muitos céus passaram na vida

E os pássaros cresceram comigo

Seu peso curvando meu porte

Minha pele em palidez de morte

Protegida do sol da lida

Pelas suas asas, meu abrigo

Como todos os homens eu me queixava

Reclamava e lamuriava

Por tão pesada e abominável

Tão malvada e férrea carga

Um dia as nuvens marcharam

Contra minha cidade, meu mundo

Exaladas da boca do céu

Fazendo toda gente réu

Como os fumos que brotaram

De imenso charuto de chumbo

A chuva caiu com fartura

Em terrível e vítreo flagelo

Punindo a cidade desde as alturas

Como vara de marmelo

As águas ferozes tomaram as ruas

Somaram-se outras chegando a cintura

Rosnando e querendo

Nos devorar

Molhados e tremendo

Vendo o mundo se acabar

Enquanto a inundação seguia portentosa

As aves abriram suas asas assombrosas

E todo o peso que na vida me esmagou

Todo o peso que me oprimiu

Às sumas alturas me alçou

Quando cavalgando nos ventos subiu

Abaixo de mim eu vi

O monstruoso caudal

Que destruía, viperino e visceral

A cidade onde cresci

Enquanto as águias me levaram

Ao sol de onde partiram

Para morar junto de si

Para sempre

João Antonio Heinisch
Enviado por João Antonio Heinisch em 24/02/2017
Reeditado em 24/02/2017
Código do texto: T5922326
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