PROPRIEDADE NOMINAL
Ontem a posse
Na pele marcada com ferro brasante
Hoje a letra carregada no registro negante
Assinatura do sequestro escravizante
Sagração da língua colonial dominante
Minha nascente-nação no tempo se perdeu
Eu era Kayodê, Abayomi,
Tumaini, Lumumba, Olakundê...
Eu era povo Angola, Congo, Ibo, Hauçá,
Benguela, Umbundo, Massai, Monjolo...
Eu era povo Cabinda, Iorubá, Quimbundo,
Mina, Quiloa, Xhosa, Rebolo...
Eu era rei, príncipe, ferreiro…
Eu era caçador, guerreiro, historiador…
Hoje sou reticências
Sou xis
Sou ypsilon
Sou dábliu
Não tenho pátria
Sou visto como pária
Sou ponto de interrogação
Sou clã queimado em pregões
Linhagem baralhada em divisões
Identidade rasgada em leilões
Espólio de guerras tribais
Resíduo de lote que alguém comprou
Resíduo de lote que alguém vendeu
Feito bibelô
Feito bicho
Feito coisa
Feito máquina
Feito peça
Assim tratado fui
Assim mutilado vivo
Assim papagaio sou
Sou boneco
Sou bicho papão
Sou espantalho
Sou fantoche
Sou marionete
Sou mina valiosa sugada até a última veia
Sou pista de pousos e decolagens
Para conflitos, para crises, para desafetos existenciais
Se muito sou bandeira de congados
Sou amada escola em carnaval
Sou moçambiques festeiros com muitos nomes
Nas capoeiras mestre sou em muitas rodas
Nas peladas ganho apelidos
Nas redes pululam xingamentos
Só desfilo em manchetes quando derramo sangue
Quando inflijo regras e rezas de questionável irmandade
Sou sempre reduzido a negão
Reduzido a negro
Reduzido a neguinho
Reduzido a moreno
Reduzido a mulato
Reduzido a pardo
Reduzido a cafuzo
Sou sempre reduzido a confuso
Sou sempre reduzido a marginal
Reduzido a mercadoria
Reduzido a pedinte
Reduzido a ninguém
Assim constantemente sou
Assim visto viciadamente sou
Reduzido
Reduzido
Reduzido
Reduzido...
Sobrevivo e por baixo vivo
Com pronome possessivo
Da, das, de, do, dos
Sem passes relevantes
Do pretenso mundo claro devo ser varrido
Empretecer atrasa
Ser preto incomoda
Amar preto é proibido
Gostar de preto só quando for conveniente
Pensar em preto é sacrilégio
Nasci no eito colonial
Fui liberto com pena imperial
Sem título algum
Cólico somente herdei católico nome e prenome:
Antônio José, Marcos Tadeu,
João Aparecido, Paulo Mateus,
Lucas Benedito, Cristóvão Sebastião,
Francisco Jeremias, Pedro Jesus…
E do senhor dos meus antepassados
Estuprador e feitor das minhas bisavós
Sangue do meu sangue saqueado
Pelo paraíso de um Deus conivente
Sem páscoa, sem pompa, nem trompa
Trago sua garra cartorial no sobrenome:
Alcântara, Barreto, Camargo,
Félix, Lopes, Pereira,
Santos, Silva, Souza, Vieira...
Perambulo
Sem amor
Sem cidadania
Sem coroa
Sem dialeto
Sem direito
Sem herança
Sem idioma
Sem indenização
Sem passaporte
Sem respeito
Sem brilho nenhum
Forças medulares
Meios cúmplices
Pelourinhos midiáticos
Ainda me forjam com incensos
A dar voltas incessantes
Em torno das árvores do esquecimento
Sempre que poetas insistem em lembrar
Sempre que poemas persistem em questionar
Milhões de reparações devidas
Matadouros permanecem famintos
Consciências acesas perturbam negócios
Bovinas manadas não podem findar
Oubi Inaê Kibuko, Cidade Tiradentes para o mundo, junho/2007, submetido a revisões.