INVOCAÇÕES

(acompanhado de jingoma, jingunga e coro)

Nesse instante, o fulgente luar não havia inda

Voltado do seu berço entufado onde se acoita

Porém a Grande fogueira já estivera a crepitar

Em savanas ancestrais, à beira d' albufeira, junto

Ao séquito desfilando em volta e contravolta

Mediante vultos valedores de Myondona*—

E na hora tardia co' a chegada de mais fiéis

A batucada aumentara seu frenético pulso

E o frémito enchera o tempo enfumaçado

Qual trovão insano e solto lá pelas serranias

Marcando o compasso de salto insólito

Dentre corpos ora entregues a saracoteios

Qual temporal a jorros e pavorosos berros

Que o volúvel tempo trouxera do bravio mar

Agitando o terreno inteiro e algo etéreo

Para se consagrar o sublime e nobre Nvunji*

Nume Preferido dos povos oprimidos

E Celebre Superno de todos os pobres

Fora o maior desvelo dos homens suados

Que a eito batucavam e em giros suplicavam

A lépida mística Serpente que os conduzira

Em procissão ao rio no declive dalém

Declamando mil e mais glórias ao Kilundu*

Fora o maior êxtase das mulheres em transe

Possuídas e abandonadas a si mesmas

Cos rostos contraídos em grave exaltação

Ao ritmo clamoroso, rouco e oco, quase gago

Invocando a imagem d’ amável Ngonga* —

Contorciam-se e retorciam-se à batucada

Enrolando-se, levantando poeira em torno

Assim como gemiam em convulsiva loucura

Estremecendo e rebolando impulsivas

Num inebriamento sagrado e até macabro

Pondo à vista aquela tão esquisita impressão

De entes do outro mundo bem presentes

Imersos em delírios com braços em preces

No ar semi-parado por um súbito arrepio

Induzido p'lo mestre Ngunza,* o altíssimo

Que de improviso infunde coragem e fé —

Muito logo, no crepúsculo ali suspenso

Em meio à irosa batucada e mais poeirada

Surgira toadas e espontâneas chamadas

Mescladas de espantos, ais e esperanças

Oriundos duma só profunda veia

Entre prantos abertos e apertos de entranhas

Tanto quanto um poema que tanto se faz sentir

Para melhor inspirar e deveras libertar

Pois o vibro redentor penetrara os raros gestos

Que realçavam ânsias de almas em alternos

Volteios, dançando quais flamas à intempérie

Acompanhadas por tal estranha eufonia

De vozes agudas pejadas de mesta mágoa

E tormento cruamente a roer no âmago

Vozes todavia a vozear em revel consono

Desafiando como sempre superando afoitamente

A opressão, a humilhação e abusos gratuitos

Daí, mais uma toada grávida de comoção

Rompera o céu denso e a chana extensa

Numa fragorosa, imensa chuvada que caíra

Co' uma lufada tremenda e bastante tensa

Reforçando a batucada aos doidos pinchos

Em honras de Ndala-Makita,* o notável

Enquanto o sangue nato manando por dentro

Agora então se aquenta e se agita ao retumbo

Do passado presente ecoando futuros outros

Reiterados em furor e anseios alçados ao alto

No sonho indómito d’ África preta e certa

Que prende em si a certeza de sol e firmeza

(Malgrado essa temporada tempestuosa

E a multidão aparentemente alquebrada)

Esta é a tenaz conquista da dor mais atroz

P'la dura e justa justiça por vir, sim mano —

A justiça dos povos oprimidos e pobres

Quando, por inteiro, a pujança do batuque

Desencadeia a vera têmpera do espírito da terra

Ante a lua nova que, alfim, rubente se desvela

Na noite neblina de savanas e chanas espessas

Em sinergia co' energias de vidas benzidas

P'las seis flamas de Uyangongo,* o Poderoso!

Jingoma = batuques

Jingunga = sinos

* = deuses do panteão Kimbundu (Angola).

Escrito originalmente em Kimbundu.

Tradução portuguesa do Autor.

(Black Lives Matter, também em Angola)