quem não é Recôncavo também não sabe onde é Luanda
se “olha pro céu, meu amor”
já não fosse um verso
consagrado na voz do rei
eu diria, meu amor
olhe pra cima e veja
como ele está lindo
sempre está
às vezes nós que não estamos
se “tu pisava nos astros, distraída”
já não tivesse sido adaptada por Caetano,
tornando-se:
“tropeçava nos astros desastrada”
eu diria também que
distraída-desastrada-atônita
nos astros eu pisava
ou tropeçava
ou saltitava
ou caía
ou me esbaldava
no chão de estrelas
de luzes mil
clarão do infinito
sob a lua-lua-lua de cristal
explícito objeto da noite
se dizer que “se eu sou algo incompreensível,
meu Deus é mais”
já não tivesse sido dito
e bem cantado por Gil
eu só não chamaria o Deus de meu
já que é dele a canção-oração
pra se quiser falar com Deus
se um “ah” já não fosse tão bem ecoado
como Gil faz em “Filhos de Gandhi”
a música seria outra coisa
que não essa coisa extraordinária
as onomatopeias por ele entoadas
fazem com que
todo o esotérico do mundo
se mantenha apenas
no tempo-espaço
enquanto no aqui e agora
o Tempo Rei desse rei
não se abala
se Caetano já não fosse o que ele é
desde que se propôs a ser o que é ele
eu não estaria aqui escrevendo nada
há de haver um impulso de vida
presente na música e na arte, na Bahia
e na música brasileira
que faz a vida valer a pena, sim
os brasis se entreolham
no espaço entre o terceiro olho
onde é possível ver
dois corpos que, juntos,
possuem quase 160 anos:
um século de música
um século de Tropicália
um século de Bahia traduzida
por dois filhos dessa terra
da Terra
de Salvador
de Santo Amaro
do Brasil com “s”
e da Bahia com “h”
por fim, do mundo
de todos eles
aquele tempo, Gil,
em que explicar já não será necessário
porque você não é perfeito,
mas o mundo também não é
mas você é o que está nesse mundo
e, por gente assim, é que tudo vale a pena
você mesmo já disse
e já sabe
que tudo permanecerá o mesmo
transformando
o tempo, o senhor do destino
o tempo, o rei
a única constância da vida
que, como os baianos menos velhos que vocês diziam,
“besta é tu não viver nesse mundo
se não há outro mundo”
e tem mais
se tiver outro mundo
é preciso e necessário viver
e viver só é vivível num mundo
de música, de Brasil, de Caetano
e de Gilberto Gil
como já dizia Dona Canô
“quem não morre,
envelhece”
então, ao mestre,
que 80 anos
seja mais uma prece