Tu és a forma ideal, estátua magistral …
me sinto finalmente livre
por agora ter deixado
de admirar o pouco
que admirava alguns
dos homens que conheço
estou, oficialmente, de volta
ao sonho
renuncio à realidade
eu vou escrever o amor
perfeito
que precisa ter defeitos
platônicos para parecer
perfeito
que precisa ser sofrido
cheio de complicações
humanas , patéticas
que precisa ser
parecido comigo
não vejo mais sentido
em querer me forçar
a gostar de alguém
que nunca vai sentir
o que eu sinto
que nunca vai ler
o que eu leio da forma
como leio
e sentir o que eu sinto
que nunca vai ouvir
o que eu escuto
e enxergar o que eu vejo
que nunca vai me amar
como eu já amo a ideia
de alguém assim
que seja intenso, mas
que não queira me prender
que seja meu, mas que seja
antes de tudo
dele mesmo
que não seja inseguro
para não me fincar aos
seus pés
que tenha coragem
porque é preciso ter
porque eu tive
e aí eu posso ser
tua que sou
e ficar diante
de ti
e você
diante de mim
com os nossos
pés juntos
talvez os meus
por cima dos teus
como meu pai fazia
quando eu era criança
mas que comparação estúpida
e não tem Freud razão?
mas só quis dizer que
estarei eu, estará você
em pés, parados, nos vendo
eternamente em segundos
mas jamais como
âncoras um para o outro
embora eu goste do que soa
Camões ao dizer
que amar é querer
estar preso por vontade
embora eu goste do que
soa Leminski ao dizer
que “tão bom ser teu que sou
eu a teus pés derramado/
serei para ti mais que um cão/
morto teu pai serei teu irmão
direi os versos que quiseres
esquecerei todas as mulheres
serei tanto e tudo e todos”
e embora eu também
goste de Ana C
ah, a depressiva e amorosa
Ana Cristina
“tantos poemas que perdi
fiz de tudo pra você gostar(…)”
que tristeza, minha querida,
gastar palavras com homens
tolos
só não estão perdidos os poemas
porque a poesia é maior que nós mesmos
me parece que o melhor é escrever para
quem está na imaginação
ou escrever, com sorte, para esse
amor real de quem sabe um dia
enquanto isso
eu continuo dizendo
que estávamos nós dois,
completamente apaixonados,
e diante do seu suspiro
o beijo que era para mim
quem recebeu foi o papel que
abrigava tamanha imersão
no que tem de mais bonito,
de mais profundo
no que dói de pensar porque
o peito não suporta
e dilata-se em êxtase
em transe
a cabeça não suporta
e enfim você compreendeu
que aquilo era o sentido da vida:
o amor
ao fundo, ouve-se
os belos versos de Pixinguinha :
“Se Deus me fora tão clemente
aqui neste ambiente
De luz, formada numa tela, deslumbrante e bela
O teu coração junto ao meu, lanceado
Pregado e crucificado sobre a rósea cruz
Do arfante peito teu”
na voz do meu amor,
além de você,
que canta sem esforços
na gravação de um documentário
em sua casa, não sei, em seu Santo Amaro
em uma cadeira qualquer, com um violão
e sua voz única
com sua interpretação sempre magnífica
é disso que ele precisa
pra me fazer precisar dele
Caetano
mas claro que você sabe,
saberia, saberá
pois nesses versos de amor
ideal, de amor
perfeitamente
imperfeito,
você me conheceria
a partir do que eu amo
e essa seria a razão
para me amar tanto
e não tem de ser assim,
pois?
e compartilhar de tudo
que me toca, que me emociona,
que me faz viva e querer estar
mais viva do que nunca,
que me permite sonhar
inclusive com esses sonhos bestas
de criança
isso deve ser a coisa mais
sublime do mundo
e deve ser tão raro também
olhar nos olhos da pessoa
que a partir daquele instante
será a sua pessoa preferida
e enxergar um espelho que
reflete para além de sua própria
imagem
que permitirá abrir o portal
para dentro daquele corpo
daquela mente
e coração
depois disso, eu nunca cheguei
perto de nada do que escrevi,
mas depois disso
com certeza
na certeza de quem não sabe
mas que sonha
tudo o que a gente deve querer
é mergulhar nas retinas
daqueles olhos lindos
e permitir ser fotografado
a cada troca de olhares
e permitir se enxergar diante
daquela luz emitida
sabendo que além de você
existe o outro
um emaranhado de nós
não cegos
apenas perdidamente apaixonados
sabendo que estão os dois loucos
porque todos os poetas
começaram fazer sentido
mas isso não assustará
nem a mim
nem a você
porque a poesia faz tão
parte da minha vida
quanto da sua
embora eu seja mais jovem
e por isso muito encantada
com os recém-chegados
fios brancos que eu avistei
em sua barba
e de que servem os poetas,
além do que sou eu pra você?
mas continuaremos lendo,
obviamente,
porque a poesia pra você
tem o mesmo gosto
que tem pra mim
gosto de sentido
e eu gosto dos que sentem
e gosto de como você seria
tão cheio de manias e bloqueios
e eu, do meu lado, tão cheia
de minhas complicações
mas elas se encaixariam
tão perfeitamente em você
e tudo que é seu
tão perfeitamente em mim
que não faria mais lógica ,
nem pra mim
nem pra você,
estar longe um do outro
não tão perto como morar junto
não tão longe para não configurar
em tortura
que você viaje muito pra eu sentir
saudades
mas que saiba que eu sinto
até estando com você
que eu seja livre como sou
e que você admire isso
que você possa ser o mais
careta possível se isso significar
ser sensível
tão mais ou quanto eu
porque eu percebi que o oposto
definitivamente me repele
imagina te encontrar em uma
livraria
no lançamento do mais novo
romance de Itamar Vieira Júnior,
autor que você celebra assim como eu,
ou por causa de uma visita ilustre de Mia Couto,
poeta que te toca
assim como me toca,
imagina encontrar alguém
que me entende
porque é meu irmão de alma
e se pra ele Caetano, Gil,
a Tropicália,
o cinema, a Bahia,
a comédia,
Tatá Werneck,
a política,
os sonhos,
Ray Charles,
gelatos,
poesia,
música,
Brasil,
enfim
se pra ele esses poucos
exemplos forem óbvios
porque tudo isso
esteve presente desde sempre
em sua vida
eu estaria diante
do objeto do meu
mais desesperado desejo
porque se o cotidiano dele é assim,
tão próximo do meu,
eu estaria diante de todos os meus
versos em pessoa
de alguém que pudesse
finalmente
me enxergar
e se enxergar
refletido em mim
ao fundo, termina a canção
que estava tocando enquanto você lia:
“(…) depois de remir meus desejos em nuvens de beijos
Hei de te envolver até meu padecer de todo fenecer.”