Tudo é líquido

Arrumando o velho guarda-roupa,

separando as roupas que não serviam mais,

ela acha uma caixa antiga que não se lembrava mais da existência.

Sentada no chão, em meio ao caos de roupas e sapatos,

com a caixa em seu colo e o coração a mil, ela hesita em abri-la.

A expectativa paira no ar...

Que tipo de lembranças essa caixa guardaria?

Meio receosa e com a curiosidade dando voltas,

ela, por fim, decidiu abrir a caixa com todo o cuidado requerido,

algo que Pandora não teve ao abrir a sua caixa, mais letal que essa – ou foi o que imaginou.

Na caixa tinha muitas fotografias e outras quinquilharias.

Registros da sua infância, adolescência e começo da vida adulta.

Um bebê fofinho e risonho brincando na banheira.

Uma menininha de maria-chiquinha dançando na quadrilha da escola.

Uma garota traquina na sua bicicleta rosa, com o joelho ralado.

Uma grande família em volta da mesa de jantar da casa da vovó.

Uma adolescente com seu all star amarelo e óculos de grau.

Tantas memórias afetivas.

Olhando mais e mais fotografias, ela achou uma que julgava há muito tempo perdida.

Um casal, no alto de um prédio, com o pôr-do-sol ao fundo.

Estão deitados em uma poltrona redonda, com uma manta sob as pernas.

Abraçados, a garota apoia seu rosto no peito do garoto.

O garoto descansa seu rosto no emaranhado de cachos dela.

Não dá para ver seus rostos, mas ela sabe muito bem que são.

É a última fotografia deles juntos.

De um pôr-do-sol que não viram.

De promessas que não cumpriram.

De olhares que não trocaram.

Do horizonte que não partilharam.

De planos desfeitos há muito tempo.

De uma dor adormecida que ainda machuca como da primeira vez.

Sorrisos que se perderam naquele encontro.

Sim, ela sabia que tinham sorrido um para o outro.

Choro contido de uma despedida que não deveria ter acontecido.

Talvez o amor seja isso: tapar o buraco que alguém deixou com uma fotografia bonita.

Enquanto a vida lembra que tudo é líquido e escorre pelas mãos.

Lágrimas que nem sabia que ainda podia derramar molhavam seu rosto.

O tempo se perdeu naquela fotografia antiga.

O amor ainda vivia além da fotografia poética.

Colocou a fotografia de volta a caixa.

O ventou agitou as cortinas e uma fresta de luz invadiu o quarto.

Uma luz bonita, com as cores do arco-íris.

Após muito tempo, ela sorriu.

Estava em paz.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 06/07/2020
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