sombra invaginada

A noite devora o dia, num gesto antigo e eterno,

E tudo se recolhe ao ventre escuro, onde o silêncio

É uma forma de música. Observamos,

Eu e a solidão, cúmplices na vigília,

Como a noite é o sangue vital que o sol alimenta.

Março desfaz-se em penas, uma ferida no tempo,

Um erro desenhado na pele do mundo,

E o tempo, esse deus manco, arrasta-se

Como se o vento o tivesse abandonado.

As árvores, essas sentinelas da espera,

Guardam o segredo da quietude.

Escrevo, e a saudade é uma lâmina

Que me desfaz o peito, suspende os nervos

Numa incerteza de quem, na juventude,

Se perdeu na falta.

Quedas, portas que se fecham, vidas que se apagam,

E a falta é agora um rio sem margens,

Dói por muitos, amei em multidão,

E fui amado.

As conversas eram saltos no abismo,

Era a ante sala onde os corpos ofereciam sua cartografia

E a escuridão invaginava englobavam rapazes e moças,

E gemidos, apertos, as espumas que acompanham

O coito bem executado, e a noite não mais dormia,

Ofereciam estrelas e nebulosas a alumiar o presente,

Logo eram perfumes a gemer dentro da sombra,

Ah, juventude! desejada e temida.

Ainda sinto a sua mão, ou a memória de seu exageros,

Amou e se perdeu na gulodice, sequer guardou

as tâmaras, as uvas noturnas, a prestimosa maça aveluda,

tão bela, tua incoerência era uma flor

imberbe, vital, grávida de outros futuros,

Ana, Deborah, Gabriela, Claudia, Marina,

agora, nomes, estripulias na vertigem da memória,

Agora a noite se estende, um manto sobre tudo,

Preparando-nos para a escuridão que é

Igual a todas as outras noites - apenas

O descanso do dia, que amanhã será sol deslumbrante,

E o fruto verde e o fruto maduro são os

Mesmos nessa vertigem que se chama vida,

Nada é em vão, se alguma lição foi aprendida.

Pouco sei, mas sei, que na falta de água,

Os lírios crescem desajeitados,

E o dia que se recusava o tremor da noite,

Esconde no horizonte mais escuro,

Enquanto, em algum lugar, outra manhã já floresce,